quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Tristeza crônica.


Pior do que felicidade
Insuficiente
é tristeza
insuficiente.
Incompletos todos são
                                        [Todos somos.
A incompletude é a partida da largada
O cupom da viagem
A despedida na chegada.
A insuficiência
É travessia recusada
Torneira pingando na madrugada
Pingo socando testa
Galo engasgado na noite eterna
Tristeza crônica não diagnosticada
Que não passa
Que não diz a que veio
Essa é das piores
Que nos divide ao meio
e nos esconde da outra metade.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O aprendizado do doce.


Escrevi com lápis de manteiga
no sol de meio dia
Para que as palavras perdessem suas normas
e suas roupas
No deserto petrolífero da cidade
as palavras derretidas misturaram-se no asfalto
e este com os carros

a poesia beijava os pneus
e ganhava função na engenharia dos automóveis
e ganhava preço e rótulo e gramática
Perdi as palavras pro tecnicismo
presa ao sistema.
Chorei.

Dona maria falou
não chora menino, te farei um lápis de mel
e vê se não escreve no sol do meio dia
escreve em cima do morro
perto da boca do vento
e quando ele soprar
deixe as palavras livres
liberte-as, do papel e do pedestal
que é para molhar o povo de alegria
adoçar a lambuzar
o asfalto negro e o barro vermelho.

O açúcar tende a adoçar essa gente toda.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Gastrite do olho.



O gato estava andando pelos cantos
meio como quem quer entrar na parede
Diagnostiquei-o com gastrite
Minha avó sempre falava,
bom para gastrite é chá de espinheira santa
e eu sempre falo
bom para gastrite é poesia.
Então levei para o felino
Um chá quente
E um livro de poesia

E o gato fica assim
desequilibrado
Com aquele olhar de gato
Espreguiçando-se entre uma poesia e outra
Porque poesia é coisa para quem não tem o que fazer
É coisa para quem se banha com a língua
Para quem tem olfato para o lixo
Poesia é banhar-se com a língua
É brincar com a língua
E perder tempo com ela.

Gato nasce com uma vantagem poética
Amanhece diariamente com um novo olhar
brilhoso e lubrificado
Singular ao mundo
Descansado e bem disposto
a se impressionar com a vivacidade
de uma pedra
ou comover-se com a hipocondria do muro.

Então nos curamos da gastrite assim
O gato lê poesia
E eu leio aquele par de olhos incompreensíveis
porque livres
porque vivos
Viajo sem rumo
Incorporo sua liberdade
E já não sofro mais de gastrite
do olho.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O menino que queria ser selvagem

A história oficial mutilou a cultura africana
ridicularizou o indígena e submeteu
a mulher como fiel companheira do homem
Exterminou o selvagem
o selvagem que fomos
um dia, no sentido mais presente
da palavra.
Mas o menino queria ser selvagem.
Alegava desejo de fome
sua apatia o transbordava
do dedão a sobrancelha.
E o menino já não sentia fome de sol,
nem fome de lua.
O menino tinha um vazio tão grande
e tão profundo no estômago
que comer o despropositado fim de tarde era impossível.
Colesterol de angústia
Obesidade de conformismo
Gastrite de medo
O menino não comia nem mesmo o sono.
Ser selvagem tornou-se racional
despiu-se da civilização
da história contada pelo caçador
e dançou na selvageria do sapo
não era um selvagem como a triste história nos impõe
era um selvagem outro, tal qual
o pássaro faminto pelo céu
como o lagarto
faminto pelo sol
e o mosquito, faminto pelo sangue.
Selvagerizou-se, até inventar palavras,
tal qual a poeira que inventa-se ao vento.
Menino pelado e faminto pelo mundo.
Despiu-se de seu número de competidor e
não enxergou o outro como ameaça.
Esqueceu-se um pouco e foi comer a vida,
de forma tão selvagem que não necessitava
de espelho para se reconhecer,
pois se via no outro,
de uma fome tão faminta
que aprendeu a ouvir
os silêncios dos caçados da história,
dos condenados ao silêncio quase eterno.

Desde então o menino aprendeu a saciar sua fome
com dois pratos de ouvidos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Manha da manhã

O Sol e a Lua resolveram se reunir para reverem o conceito
da manhã e da noite.
Tudo porque a manhã enjoou do galo
típica manha da manhã.
Agora ficou assim:
Os galos cantam para a estada da noite
e os lobos uivam para a chegada da manhã.

Praxis

O menino engravidou uma ideia
ligeiro do jeito que é
a ação vai nascer prematura
dessas que fazem o sol
rever o conceito da manhã.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Louvação ao trabalho

Um dia eu estava andando de bicicleta
e dei a sorte de encontrar um artista de rua
no semáforo.
Torci para que o sinal fechasse e
poder vê-lo fazer o mundo girar
nas mãos.
E as bolinhas giraram, pareciam vivas
de tão entrosadas e harmônicas.

Mas de repente um homem que dirigia um caminhão
gritou:
          Vai trabalhar vagabundo.

A bolinhas caíram.

Fechei os olhos e pedalei
o mais rápido que pude
nas busca de encontrar
outro mundo.

domingo, 11 de novembro de 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O menino e o carnaval.

No primeiro dia de festas de carnaval
o menino se fantasiou de ave.
Para o menino, vestir-se de outro
era viver o outro, constituir-se enquanto outro.
Por isso ele virou ave.
No fim de sábado o menino falava
a língua dos pássaros.
No domingo dançava desengonçado
como o pisar dos pássaros.
Na terça-feira o menino estava sobrevoando
o mar de gente, como uma gaivota.
Era o menino gaivota, com pena e bico.
Era para isso que servia o carnaval,
para troca de experiencias,
de histórias
de palavras.
E despir-se das roupas
e dos preconceitos.
Assim, o peixe se vestia de lagarto
e ficava lá na pedra
lagartiando ao sol do meio dia.
A formiga se vestia de baleia e
derrubava, propositadamente,
todos os foliões com sua enorme calda.
O pássaro se vestia de cobra,
queria andar arrastado e
sentir o cheiro da terra.
O carnaval era o maior laboratória da vida
cheio de experiências e descobertas.
O menino se transformou em ave
aprendeu ave
respirou ave
respeitou ave
era como se virasse irmão de todas as aves.
Era isso o carnaval para o menino,
ser outro e amar outro, em todos os dias do ano,
porque a única realidade possível era a fantasia.

Marcelo se vestiu de mulher todos os dias de carnaval
dançou
bebeu
gritou
como mulher.
Experienciou e amou a mulher.

Na semana seguinte Marcelo batia em sua esposa,
porque ela sorria alegremente para o padeiro.

O menino e o nada

Ela surgiu do nada
desses nada que são
coloridos
que falam cantado
e cheiram primavera

o menino queria nada para si
mas não tinha espaço na gaveta
nem na boca
nem nas palavras
nem na memória.
O nada é do tipo de coisa
iguardável
ifotogravável
que não cabe no bolso da bermuda
e nem dentro da carteira
O menino dizia:
O nada só pode vir do nada
e ir para o nada
É o tempo livre de sua cronologia.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dias de Dourados.

O menino brincava na terra
a terra em que seu pai, seu avô
seus amigos e sua mãe nasceram
o menino brincava despropositado
desenhava na terra
e deixava um pedacinho do dedo em cada traço
o pai admirava a liberdade da infância
e refletia sobre a liberdade da liberdade.
Depois de uma hora o pai disse:
Prepare-se filho, amanhã vamos viajar
vamos todos para a morte.
O menino respirou fundo
encheu-se de alegria
e foi divulgar a notícia para as outras crianças:
Meninos e meninas, preparem o coração
amanhã vamos visitar a morte.

Todos ficaram muito ansiosos.

A imposição da felicidade.

O menino chegou em casa chorando
nem falou com a mãe
se trancou no quarto
para chorar um pouco mais
A mãe sabia que hoje era dia de provas
na escola.
Com cuidado foi ver o menino
- O que foi filho?
e o menino com lágrimas de raiva disse
caiu na prova um conteúdo que nunca tínhamos visto na escola,
por que a professora fez isso, mãe?
E o que ela fez filho?
A professora disse para nos organizarmos
em filas e sermos felizes.
E daí?
Daí que eu não sei como fazer isso
tenho medo de reprovar de ano.

sábado, 27 de outubro de 2012

O menino sem lei


O menino nasceu no entrelugar
na terceira margem do rio
mas nada tinha de literário.
O menino era margem de si mesmo
excluído da própria condenação
um olhar nulo
de um lugar nulo
daqueles ninguéns
que nascem com duas opções
ser um fora da lei
                              [bem comum por ali]
Ou ser um desleiado
Sem leis e direitos básicos
O esquecido legalmente
Sem direito
Sem escola
Sem energia
Sem palavra
Sem amor
Ser tapete
que além de ser pisado
serve para esconder a sujeira

Dúvida difícil.

O menino resolveu escrever suas leis
escrever sua vida
escrever uma outra opção
Mas o coitado desconhecia as letras
O sistema
               [Alfabético]
Não sabia escrever
Atravancou na primeira linha
Morreu na primeira esquina

O passarinho também morreu.

sábado, 20 de outubro de 2012

O menino e o político


O menino morava no mato.
No meio dos matos, porque eram vários matos
e várias distâncias.
Moravam o pai, a mãe e o menino.
o pai se chamava pai
a mãe, mãe
e o menino, menino.
O vizinho também se chamava vizinho
porque só tinha um.
o cachorro também era cachorro
e assim a vida seguia.
                                          Na economia dos nomes.
                                          A vida quase extinta
 
                                          a comida faminta
 
                                          e a palavra rara
                                          quase calada.
Na casinha de barro no meio do mato
só havia um lápis
por isso o menino tinha que inventar sua poesia
para que as palavras não acabassem antes do fim da linha.
O menino transgredia as palavras
escrevia com o dedo
nas nuvens
escrevia com o joelho
nas pedras
e com os olhos
no céu
 
ele fazia poesia fora do papel
E a terra o escrevia no barro
porque as palavras ali eram poucas
e porque eram poucas
o cachorro resolveu morrer
assim como fez o gato, a galinha e a mosca.
E com o passar do tempo as palavras iam morrendo
secando
sumindo
 
O pai e a mãe andavam preocupados
mas evitavam falar.
E na mudez mais seca vivida no mato
 
o menino ainda fazia poesia.
Se as palavras fossem fartas
e mãe chamaria o menino de maluco
de desordenado
de mau das ideias, mas o silêncio seguia.
E nesse tempo de silenciamentos
a casa de barro, no meio dos matos,
conheceu o político
era um homem alto e bonito
e cheio de palavras
chegou em boa hora
a mãe já estava quase morta, mesmo sendo uma palavra pequena
 
O político trouxe palavras e mais palavras
fartura sobre a mesa
todos se deliciaram
a casa estava cheia de promessas políticas
e promessas era uma palavra que o menino desconhecia.
Todos estavam felizes.

O menino com os olhinhos brilhando
e as ideias cheia de ideias
pediu a capa preta do super-herói político emprestada
o político riu,
isso chama-se paletó, para que você quer menino? – disse.
eu quero voar pelo céu e molhar o mundo com as minhas poesias
assim como você
que voou até aqui e nos molhou de palavras.
O político riu ainda mais e foi embora.

apesar das palavras do político
a mudez permaneceu 
 
e a seca secou.

Depois de um tempo o pai disse, mesmo sabendo que aquelas poderiam ser suas últimas palavras:
político é um animal que em quatro em quatro anos vem se reproduzir no mato.

O menino cresceu
virou um pequeno agricultor
planta e inventa
 palavras
virou poeta.

Pena que ele não pode voar sobre esse mundo afora.

O que você faz da vida?

Acho que Manoel de Barros
e outros poetas
só fizeram advocacia
porque as pessoas não acreditavam
quando eles diziam que o que faziam da vida
era poesia.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Aconteceu hoje.

Uma estudante do curso de literatura morreu engasgada, a caminho do hospital,
após ter tentado engolir um ouriço inteiro.
O tamanho do ouriço era o de um quadrado sem os quatro lados, dividido ao meio,
da cor azul e cheiro de nuvem.
A estudante tentou enfiá-lo
goela abaixo,
mas era impossível digerí-lo.

A mãe da vítima do ouriço assassino relatou que o sonho da filha era ser poeta.

A professora de teoria literária
não quis falar sobre o caso, mas demonstrou-se muito preocupada
com o ouriço.

O médico disse que o ouriço passa bem e alimenta-se com o coração da estudante.

sábado, 13 de outubro de 2012

Monólogo de meninos.

Eram dois meninos
cada um na sua infinitude.
Eram milhões de meninos
porque eram milhões de palavras
Outro que falava de despropósitos
Outro que falava de seriedades.
Fluidez e concretude.
Eles interagiam por meio do desentendimento.
Outro sorria, outro calculava
Outro construía, outro soprava
Outro planejava, outro lançava-se
outro era instinto
outro era cientista
Outro apontava, outro desconhecia
Outro inventava, outro também.
Era o próprio castigo de Deus, as chicotadas de Babel.
Mas como deus escreve o torto por linhas certas
Os meninos interagiam assim
Nas concordâncias do desentender
Cada um no seu tempo,
na sua cultura de desentender
e de insignificar as coisas
Porque os velhos já diziam:
Conversando a gente se arromba.
De um lado falava-se em peraltagens
Rãs, formigas, pássaros, árvores e cus.
Do outro lado falava-se em paradigmas,
Estereótipos, epistemologia e anus.
Outro se preocupava com o que se guardava
na caixa de pandora.
Outro se preocupava com o material da caixa,
para reproduzi-la.
Um mantinha o mistério
Outro criava as verdades, porque não descobria.
Descobrir a verdade é engraçado,
É supor que ela já existia.
Para outro experienciar o fantástico, já era o bastante.
Outro, outro, e mais outros outros.
Outros que incomodam
que apertam a nossa bunda, que nos fazem pular
e no pulo o chão muda
e é o medo da mudança do chão
que nos fazemos Narcisos.
Que mudamos os outros
deixando-os mudos.
É a pedagogia de significar as coisas
e decidir as palavras
e estabelecer os outros possíveis
mas os meninos se diziam
se diziam tanto
que tapar o ouvido
se olhar no espelho
foi preciso.
E as insignificâncias passaram a estabilizar sentido.
E a festa acabou
a luz apagou
não veio a utopia
e tudo mofou
sua doce palavra
se você gritasse
não existe porta
outros, e agora?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O menino e a janela do banheiro.

Entrar no espelho nunca foi o sonho do menino.
Se algum dia, talvez, o puxasse pela mão,
ele entraria. Assim como fez sua prima Alice.
Mas o que o menino sempre quis foi entrar na janela do banheiro.
A janela sim era fantástica.
Todos os dias ao tomar banho
                                              - Nem todo dia ele tomava banho.
o menino admirava a janela e sonhava
com o dia em que crescesse o suficiente para alcançar
o céu com as pontas dos dedos.
Lá dentro da janela havia um céu.
Azulado e alaranjado, tão iluminado
quanto um quadro impressionista.
Também tinham
nuvens
148 estrelas, o menino contou.
o dia e a noite.
Tinha uma lua, de diferentes sorrisos,
e volta e meia tinham cinco pássaros
Zé, Fí, Dí, Lu, Tom.
Tudo dentro da mesma janela
a mesma janela do banheiro.
Como pode ter um sol dentro de uma janela tão pequena?
O menino ficava maravilhado com isso.
A professora disse que o Sol tem cerca de 696.342 quilômetros de raio, muito maior que a terra.
Mas o menino discordou, ele falou que o sol é menor do que
sua janela do banheiro.
E Joana completou, se o sol é maior que o mundo, então
ele é do tamanho da vida.
A professora não entendeu nada.
Mas o menino retrucou, se o sol é do tamanho da vida, então
ele é do tamanho do cu de uma formiga.
A professora expulsou o menino da sala de aula, por ter falado palavrão.
O menino saiu da sala e nunca mais voltou.
Seus pais viajaram para a capital.
O menino chorou ao se despedir da janela,
se despediu do dia, do céu, do sol, da nuvem e do Tom, o único pássaro que por ali voava.
Coitado, não pode dar tchau à lua e à noite.
O menino cresceu longe da janela.
Virou astronauta,
amanhã fará sua primeira viagem espacial.
Não vai ao espaço para brincar de nadar no ar
Vai para lembrar do tempo que viajava dentro da janela
dos banhos demorados
das conversas com os pássaros
dos sonhos noturnos com a noite
e conseguir tocar o céu com as pontas dos dedos
para, finalmente, entrar na janela do banheiro.

Criança enrugada.

Ela estava sentada numa cadeira especial
no centro da mesa.
Nem mexia os bracinhos, as perninhas não encostavam no chão.
Estava com as cabeça levada
de bainho tomado e
pronta para dormir na caminha, que já estava com lençois postos.
O prato de mingau estava sob seus olhos.
Enquanto esperava o mingau esfriar aproveitou
para chorar um pouco.
Quando o mingau esfriou, gritou:
- Filha. Vem dá comidinha pra mim.
A filha estava ocupada, lavando louça e envelhecendo. Gritou para o filho.
- Filho. Vai dar mingau na boca de sua avó, está na hora da papinha.

sábado, 29 de setembro de 2012

As palavras intrusas

Fechem as janelas
as portas
as venezianas
os olhos
e os ouvidos.
Ventos intrusos
que folheam as páginas do conto
que mudam as leituras
o lugar das coisas
e as coisas do lugar
vão entrar.
as imagem mudam
os olhos mudam
a boca muda
ventos intrusos
que trazem palavras
contrapalavras
histórias
vividos
ventos que entram pelas paredes
que despenteiam meu cabelo
e meu sorriso
ventos intrusos
que não são de ninguém
que entram sem pedir
e que me diz
que me encontra
que me leva
que me traz
que, num sopro ao ouvido,
me apresenta um outro Eu.

domingo, 23 de setembro de 2012

Confissões do menino estudioso.

Entender a ordem,
a disciplina
e o comportamento em uma roda punk
é fácil.
Difícil mesmo é
entender a lógica da
roda de interpretação de texto
que a professora de português propõe.

domingo, 16 de setembro de 2012

O menino que virou lembrança de si mesmo.

           A culpa de tudo foi de Doralice, ela que invadiu a memória do menino sem permissão. E não saia de lá por nada. O menino então resolveu apagá-la, foi à livraria e comprou uma borracha. Uma borracha que apagava gente.
O menino queria apagar a lembrança de Doralice. Apagou a própria cabeça, só deixou o pescoço. Já não via, ouvia e nem falava, mas ainda lembrava. O menino teve que apagar um pedaçinho do pescoço, criou um buraco para a comida entrar. É difícil comer sem cabeça, mas ele se acostumou com o tempo. Foi então que começou a comer pedras, tudo que ele achava no chão comia. Coisas esquecidas, rabiscos rabiscados e intermináveis, as coisas esquecidas antes do fim. Ele se alimentava de esquecimentos.
As crianças do bairro riam do menino sem cabeça, chamavam-no de Palito de fósforo, mas para quê serve um palito de fósforo sem cabeça?
         O problema maior é que ele ainda lembrava-se de Doralice, a menina das lembranças. Se apagar a cabeça não adiantou, por que não apagar o coração. Sua razão estava falha desde que a cabeça virou pó. Sem piedade, apagou o coração. Por sorte não morreu, agora ele comia pelo buraco do coração. As meninas riram, falaram que ele não se apaixonaria mais na vida e que nenhuma menina iria amar alguém sem coração. O amor vive de trocas, se tu não tens um coração para me dar, nada vale amar. O menino nem tinha olhos para as outras meninas, só lembrava-se de Doralice, essa sim tinha uma relação estreita com as lembranças.
       O menino queria apagar as lembranças. As lembranças que doíam à noite. Mas onde mora a lembrança? Será que a Doralice mora onde a lembrança mora? Será que elas dividem quarto? O menino só queria apagar o quarto onde a lembrança e a Doralice dormem. Mas o menino não sabia apagar memória, na escola só o ensinaram a apagar palavras e números, coisas de lápis, não da vida.
         Sem cabeça e sem coração o menino resolveu apagar seu pênis. Foi uma ação engajada, queria apagar qualquer questão de gênero. Uma busca por liberdade, sem classificações e estereótipos. Busca em vão, coitado. Quando ele apagou o pênis toda a cintura apagou-se também. Foi uma confusão. As pernas estavam livres e começaram a correr por todas as direções. Eram pernas que andavam sozinhas. Eram pernas que andavam com as próprias pernas, o que não deixa de ser liberdade. Teve um dia que a perna esquerda saiu para comprar um cigarro e nunca mais voltou.
         Após duas semanas o menino ficou assim: sem uma perna, sem a cintura, sem o coração e sem a cabeça, mas ainda era um menino bonito. O problema, mais uma vez, é que a lembrança de Doralice permanecia forte. Acho que com a ausência do coração e da cabeça sobrou mais tempo para a lembrança de Doralice.
       Doralice, a menina que vivia lembrando-se da vida, do tempo de criança, foi morar na lembrança do menino, lembrança tão forte e tão grande que acabou por apagar o menino por inteiro.
Sim, numa gélida noite o menino resolveu se apagar por inteiro, mesmo sem a mínima noção do que é o ser inteiro. Apagou o pescoço, como quem se suicida na forca. Apagou a perna direita, o peito, a barriga, a braço esquerdo, o braço direito. Não sobrou um pelinho para contar a história. O menino sumiu.
Apagou tudo, mas esqueceu das lembranças, a borracha não chegou lá. E o menino que não tinha pulmões para respirar e nem pele para coçar virou memória, virou lembrança. Foi morar no espaço e tempo da lembrança. E é lá que todos os sábados à tarde ele encontra Doralice para tomar um sorvete e lembrar dos tempos de meninice.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Poeminha ridículo.

E já dizia Fernando Pessoa, "Toda carta de amor é ridícula, se não for ridícula não é uma carta de amor".


Avisem aos marinheiros
ou às árvores de plantão
Que se caso eu morrer
                                  [de alegria]
a culpa é da Marília
Avisem aos companheiros
e também meu pobre irmão

Avisem às paredes
                           [só as com ouvido]
e não esqueçam dos amigos

Corram lá e certifiquem minha avó
e os que já foram dessa pra melhor

Deixo aqui meu recado
você fique avisado

se eu morrer de alegria
a culpa é da Marília
se eu morrer de alergia
a culpa é da Marília
se eu morrer de hemorragia
a culpa é da Marília

mas se eu morrer de amor
a culpa, mais ainda, será da Marília.




sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Confissões do menino sol

A árvore que a minha mãe plantou
começou a dar pés de guarás.
Pés, cabeças e asas de guarás
Era a árvore mais florida da rua
e por isso a mais bonita.
mas todo dia de manhã era
uma cantoria de guará
E não era só guará vermelha não
era uma árvore de todas as cores.
O frutos eram muito saborosos
e cheiravam a bater de asas.
Teve um dia que comi
um guará podre, sujo de chão
minha cabeça pintou-se de azul
e meu dedão do pé, de vermelho
me colori
criei asas
dessas que voa
e voei.
voei que voei
eu era todo pena
mas feliz.
Agora eu falava a língua dos guarás

E foi assim que descobri
que as aves
são pedaços de sol

as árvores e as flores também.

e eu também.

domingo, 2 de setembro de 2012

O menino que se perdeu



O menino moderno,
todo cheio de si
Todo dono de si mesmo
Saiu para explorar as terras vizinhas
Abriu a porteira do sítio da avó
E saiu por aí
Queria ser um desbravador
Como os super-heróis que ele conheceu
Nas aulas de história
Deixou a barba crescer e comprou uma espada
Galopeou com seu cavalo branco
Atravessou rios
Subiu e desceu montanhas
Se apaixonou por uma índia
Caçou animais
Foi caça de animais
Aprendeu línguas
Desaprendeu línguas
Conheceu pessoas
O seu Antônio, a Fátima
O Zé azul, o Márcio da dona Zuleide
O butiado, esse adorava comer butiá.
Desaprendeu pessoas
Todas elas.
O menino desbravou que desbravou
E a terra já não importava
A terra girava, era isso
Como tinha de ser,
A terra girava.
e o menino se perdeu
o menino moderno se perdeu
e voltou para o sítio da avó chorando,
chorava que chorava
estava em prantos
desnorteado
chorava que chorava
 a mãe tentou acalmá-lo.

- Calma meu filho, se recomponha. Você não está mais perdido, você está aqui em casa.

O menino enxugando as lágrimas, falava chorado, suponho que saiba como é falar chorado?

- Mãe, mas eu me perdi e não me encontro mais. Eu me perdi de mim – agora ele chorava desesperadamente – é que esse bolo de fubá não tem mais o mesmo cheiro, essa toalha de louça não seca mais as mesmas coisas, a sua voz tem outro peso, as palavras dizem diferente.
É que o Eu ficou por lá, eu me esqueci lá na cachoeira e quando voltei eu já não estava. Não me achei mais. – o menino continuou falando chorado – acho que fui levado pelo rio mãe. Eu nunca vou me achar?

A mãe, falava com um sorriso escondido na boca, sabe como é?

- Vai ser difícil menino, esse rio não tem retorno, são águas irrepetíveis. Mas deixe de chorar, isso normalmente acontece com quem costuma viver. Um eu em cada esquina. Um eu em cada outro. Um eu em cada bolo de fubá. Só é um pouquinho difícil lidar com isso.

O menino sorriu. A mãe já falava sem esconder o sorriso.

- Agora venha cá comer esse bolo de fubá, aposto que você nunca comeu um bolo tão gostoso na vida.

sábado, 1 de setembro de 2012

O olhar sensível


Fazia muito tempo que meus olhos não viam longe
Que não viam distantes
Que não viam quilômetros
Que não saiam por aí para brincar
Era tanto espaço, tanto vento solto,
Tantas estrelas, tanto luar,
Tanto chão e tanto ar
Que até me sentia livre
Sem paredes, sem quadrados
Sem repressões de cimento para os olhos
E sem ruas que guiasse os passos futuros
O caminho estava livre
E os olhos queriam correr
Pareciam crianças ansiosas ao ver um parque de diversões
Correram que correram
Subiram em árvores
Beijaram o rabo da vaca
Conversaram com a uva, se identificaram muito
Nadaram
Pularam entre os morros
Pularam entre as estrelas
Mas respeitaram o repouso da mãe lua
E pediram sua benção
Os olhos se despiram
De seu ver civilizado
Esqueceram-se de olhar para frente
E bateram num rígido tronco de árvore
Se esbugalharam em pedaços
E riram que riram
Tal qual criança travessa
Foi quando estraguei meus olhos
Quando desregulei meu olhar
O olhar criança,
O olhar estrangeiro
O olhar transgressor
O olhar sensível
A partir desse dia
Passei a ter um olhar sensível para as coisas
Tal qual o poeta
E quando voltei para as paredes
Para os condomínios
Para os paralelepípedos
Para o centro
Para a prisão dos olhos
Eu já via diferente
Via invisibilidades gritantes
Via o que não tinha cor,
A esperança
Via o que não tinha formas
A dor
Via o que não tinha massa
A fome
Via a inspiração e a expiração
que caminhavam em marcha lenta
A inspiração que entrava em depressão.
Via a singularidade
A incompletude
e o inconformismo
no conforto do conformismo.
A vida e a poesia
que se espremiam e se confundiam.
A dor, a espera e a esperança
A leitura, a escrita e a luta
Os olhos sensíveis passaram a ver
Passaram a se mover
E passaram a produzir lágrimas também.
Como os olhos de um romântico sonhador.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O pardal colorido

Gosto de ver o pássaro.
O pardal, tão comum, tão cinza, tão mais um.
Tão João ninguém, tão despercebido, tão rotina.
Tão só mais um zé pousado sobre o fio elétrico
O pássaro que nossos olhos já não veem.
Mais um pardal, entre tantos pardais, mas gosto de olhá-lo.
Aqui ele é tão singular, tão único.
Não necessariamente mais um pardal,
Mas é o pardal, aquele que consegue voar
Em terra de cegos quem tem um olho é rei
Aqui
Em terra de presos, quem sabe voar é rei
Por isso, enquanto entrego livros entre a portinhola enferrujada
O voo do pássaro me é tão bonito
mais vale um passarinho voando do que dois na gaiola
E vejo quem é rei voar
A liberdade dentro da prisão
O voo entre as grades.

Gosto da ingenuidade de seu bater de asas, que se diz livre.
Que se diz voar sobre um campo florido
Que se diz saber voar, mesmo dentro da prisão.
E tudo se confunde, liberdade, prisão
Prisão, liberdade, liberdade, prisão.
E eu que não sei voar?
Mais um preso?
Aqui e lá fora. Dentro, fora
Fora, dentro, dentro, fora
Tudo se confunde
E quando sair daqui, ainda não voarei
E a prisão eu carrego comigo nos pés, mesmo vendo os pássaros
que não representam mais a liberdade,
porque no céu azulado tudo se confunde
tudo passa a ser mais um.


Gosto de ver o pássaro
Enquanto a liberdade caminha ao lado das grades em passos lentos, não sei se para frente ou para trás, para dentro ou para fora, é tudo uma questão de asas.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O dia em que Bartolomeu apostou corrida com o rio.


Em todo treze de agosto era a mesma coisa. Toda a família de Bartolomeu se reunia no sítio da dona Cidinha. Era aniversário da Vó.
Quando criança o sítio era como a Disney Word para Bartolomeu. As galinhas, os cavalos, as vacas, os patos. O menino gostava de correr atrás das galinhas, elas corriam engraçado. Gostava de pisar na pata da vaca. Gostava de dar comidinha para o patinho. Mas depois de crescido descobriu que animal e personagem da Disney são coisas bem diferentes. E que animal não é tão legal.
Agora, com seus treze anos de vida, e muita coisa vivida, considera o sitio a coisa mais chata e banal do mundo, pior do que programa de culinária na TV.
Não tem nada para fazer. Video game. Internet. Asfalto. Shopping.
Semana passada, a contragosto de Bartolomeu, toda a família se reuniu novamente. Octogésimo segundo aniversário de dona Cidinha.
E com a porção de coisas que se podem inventar quando não se tem nada para fazer, Bartolomeu inventou uma brincadeira nova. Apostar corrida com o rio.
Subiu no morro do sol da Lucéia do seu Valmor, da melhor mandioca do distrito, e voltou feliz da vida. Cheio de verdades para contar.
- Vó! Vó! Eu ganhei do rio Vó! Apostei corrida com ele. Começamos em cima do morro, lá onde o sol quase encosta com a mão. Foi uma disputa acirrada, o rio corria ao meu lado. Quem deu a largada foi a árvore, ela disse e começamos a correr. Todos pararam para assistir nossa corrida, as pedras, as nuvens, as flores. No início eu estava atrás do rio, mas quando eu vi a árvore torcendo por mim, ela ia de um lado para o outro, dizendo: Vá Bartolomeu! Vá que o tempo também se vai! comecei a nadar no vento, o tempo também soprava a meu favor. As formigas tiraram meu chinelo e eu corri que corri, igual um pássaro no ar. Aí o rio ficou para trás e ganhei dele. A árvore atirou um galho no céu na hora da chegada. O cachorro do mato meu deu os parabéns pela vitória. E foi assim Vó, que ganhei do rio.
E a Vó disse: Mas essa corrida não foi justa, menino. O rio já estava cansado ué. Ele correu durante a noite toda. O rio começa a correr lá onde nasce o mundo, quando chega aqui já não se aguenta mais das pernas.
E a mãe disse: Vai lavar esse pé menino.
Bartolomeu lavou o pé, pegou três pedaços de bolo de milho, chamou o cachorro do mato e foi lá onde nasce o mundo.
Ele não poderia perder para o rio.

domingo, 12 de agosto de 2012

O menino que conheceu a menina gente grande.


Primeiro foram os pés que se conheceram. É que eles dançavam o mesmo passo, pisavam com a mesma suavidade. E de tanto dois para lá e dois para cá, acabaram se esbarrando. É que ninguém sabe direito onde fica o lá e o cá, então, quando o lá e o cá se cruzam é porque duas vidas também se cruzam. O encontro entre o lá e o cá é a intimidade explícita dos pés, é o amor livre de censuras e julgamentos, não porque eles se amam por baixo dos panos das calças, é porque eles abandonaram a privatização amorosa, e tem amor para todos ali embaixo, entre os quatro pés, entre os vinte dedos. E na unicidade do encontro e na multiplicidade do amor duas histórias se esbarram. A do menino arteiro e a da menina gente grande.
Não que a menina fosse grande, é que a menina não sabia brincar. E por isso se achava grande. Dizem que as pessoas grandes desaprendem as brincadeiras de infância, como correr com o vento. E a pequinesa humana é logo substituída pela centralidade umbilical dos homens. Homens e mulheres se tornam tão grandes que se bastam em si mesmos.
Mas o menino adorava correr atrás do vento.

           E ele, ao pé do ouvido da menina - os pés dos ouvidos também se amam – disse:

- Que tal subtrairmos o dois pra lá pelo dois pra cá e zerarmos qualquer espécie de distância possível?

A menina grande levantou a saia, descalçou os pés, e sem que ninguém visse, começou a correr. A menina tirou o menino para brincar.
E os dois corriam de cá para cá, o menino corria atrás da menina, e como ela era grande, não era qualquer brisa, era um tufão. As duas histórias que se cruzavam brincavam juntas de ser vento. E para isso só bastava sair do salto e fechar os olhos. Corriam entre, sobre, sob, pós e ante o vento. Quem via de longe jurava de pés juntos que menino e menina se transformaram em vento, que foram comidos pelo tufão.
Foi um parênteses de vida. Algo indizível, indemonstrável, irreplicável. Que só podia ser visto, a olho nu, de dentro do parêntese. Mas algumas pessoas não viam, é que essas vestem os olhos com apetrechos que repelem a trivialidade. Um parêntese cheio de cruzamentos entre o cá e o lá.
Mas foi só um tufão que arrepiou os cabelos e passou. Passou que passou, e o parêntese de vida se fechou. O menino enlouqueceu. Porque o maior nível de consciência é a loucura, e vice-versa. Como caminhar depois da corrida? Pensava ele. A mudança repetida entre o lá e o cá martelava sua cabeça, ele precisava do cruzamento, de estar dentro do parêntese.

Dois para lá, dois para cá                 Dois para lá, dois para cá

        Dois para lá, dois para cá                     Dois para lá, dois para cá  Dois para lá, dois para cá
Dois para lá, dois para cá  Dois para lá, dois para cá                       Dois para lá, dois para cá

Um pra cá   prá cá pra cá pra cá

Cá cá cá cá cá cá cáááááááááááááááááááááááááááá...

O menino virou cientista, trabalhava com a química e com a física, conduzia reações e elementos. Queria reproduzir o tufão. Queria reproduzir a brincadeira de correr atrás do vento. Mas faltava a outra história entre tanta alquimia, faltava o cruzamento entre o cá e o lá das duas histórias de vida. Faltava a relação amorosa entre os pés, a conversa entre os pés do ouvido e a corrida descalçada de criança. O problema é que o menino virou um menino grande.
E o menino cientista, sozinho em seu laboratório, não conseguiu replicar o parêntese de vida. É que toda vez que ele dava dois passos para cá o parênteses se ia dois passos para lá. Como o bailar da utopia.  


Mas bonita mesmo é a história dos pés.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O menino que rasgava saias.

Era um menino arteiro e sorridente, mas a mãe nunca soube dizer o que veio primeiro, a arte ou o sorriso. Todos queriam saber se ele sorria porque era arteiro, ou era arteiro porque vivia sorrindo. Essa necessidade de ordenar os fatos. Alinhar o tempo. “Cronologizar” os sentidos. Mas o menino não. Ele não gostava de fórmulas, de ordens, de regras, de filas, de respostas universais e de verdades. O menino gostava da desordem. E o sorriso era sua resposta para a cientificidade do mundo.
Na escola, nas aulas de matemática, o menino contava os números assim:
1, 2, 4, 15, 20, 28, 5, 8, 1, 44, 12...
Ele não gostava de reproduzir.
Nas aulas de português também era assim, e a professora, coitada, insistia em dizer:
- Dislexia.
Só porque o menino gostava de trocar os sentidos das coisas, gostava de pintar de azul as coisas. Escrevia um mundo seu, inventava suas verdades mutáveis, e isso era a liberdade para ele. Gostava de inventar textos. Mas a língua pronta e acabada não gostava de beijá-lo, não permitia ousadias. E as professoras o presenteavam com um zero. Mas o menino gostava do zero, tão misterioso, tão nem aí para o mundo.
Até no amor era assim, misturava tudo. Matrimônio, amor, amigos, paixão, namoro, tesão, colegas, afeto, amantes, paqueras, e até mesmo o desconhecido. Tudo era passível de ser amado, em qualquer lugar, em qualquer posição. A ordem não importava.
Mas o menino queria ver todo mundo junto. Todos seus amores sob o mesmo céu. Começou a rasgar despedidas, a cortar o tecido que tecia a solidão. Não por egoísmo, apego ou ânsia de domínio alheio, o domínio acompanha a ordem, e o menino gostava da desordem. Gostava de estar no canto das borboletas, no canto das ondas, no canto dos araçás. Gostava de escutar o canto do quarto, o canto da estrada, o canto da lagoa.
E assim o menino começou a rasgar saídas, saidinhas e saias. Não por assédio, mas o menino cansou de ver pernas o deixarem só. E rasgou a saída na altura do joelho.

Para que você não saia.
Para que ele não saia.
Para que ela não saia.
Para que a saída não saia.

E a dança libertou as pernas, e a saia rasgada libertou a dança. E cada um bailou conforme o seu eu conduzia, era o encontro entre o Eu e o Outro, que era a música. E a dança desordenou a métrica. Cada um foi para um lado, para um canto, para um morro, para um mar, para um céu, para um vento. E ninguém mais se viu, ninguém mais se falou, ninguém mais se amou. A saia rasgada libertou a liberdade..

E agora sim o menino podia dormir sem medo, pois só a liberdade não deixa ninguém só à noite.

terça-feira, 31 de julho de 2012

O menino que não sabia correr


E a mãe, mexendo a massa do bolo de chocolate, olhava o menino com olhos ternos.

- Corre menino! Vai correr e brincar lá fora.

E o menino, sem olhar para a mãe, dizia:

- Lá fora é muito pequeno mãe, aqui eu tenho acesso ao mundo. Navego aonde eu quero. Estou brincando de carrinho com um japonês.

Coitada da mãe, nunca tinha brincado com uma menina da cidade ao lado, quem dirá com um japonês. Nem de boneca ou carrinho tinha brincado. Ela corria que corria antigamente. Os morros eram mais espaçosos. O sol costumava trabalhar mais, não dava lugar para tantas sombras. E as ruas, assim como os pés, eram todas descalçadas, não havia essa concretude acinzentada artificialmente pintada de colorido. A mãe navegava no vento.

E a mãe, fazendo uma blusa de tricô, dizia:

- Vai correr menino. Vai dançar e namorar um pouco.

- Lá fora é muito antigo mãe, fede a mofo. Aqui é aberto, lá é fechado. Lá fora é doentio e empoeirado. E estou namorando mãe, a Fátima mora na Bélgica, estou conversando com ela.

A mãe já batia os ovos do bolo de chocolate com dificuldade, mas continuava seus afazeres domésticos. Permanecia varrendo o chão sem sujeira. Ninguém sujava o chão. Ninguém saia de casa. Ninguém chegava da rua. Era um relacionamento a distância dentro de casa, entre a mãe e o menino. O mundo que separava os dois era a geração, o progresso, a evolução. A experiência de trinta anos. O menino tinha o acesso ao mundo na ponta dos dedos. A mãe tinha as agulhas de tricô, a colher de pau que mexia a panela. O mundo era pequeno para o menino. A mãe fazia a tradicional broa de milho herdada pela sua bisavó. A mãe que corria que corria, já não corria mais, se arrastava com o tempo. Morria com o tempo.

E a mãe, penteando os cabelos brancos, dizia:

- Vai correr menino! Vai trabalhar, viajar, nadar. Vai correr menino!

- Calma mãe, para quê tanta pressa? Estou vendo a cotação do dólar. Analisando os juros dos imóveis. Estou prestes a fechar um negócio importantíssimo numa reunião nos Estados Unidos.  Além do mais, você já viu essa exposição no museu do Louvre? E essa comida tailandesa? E esse perfume francês? Vou casar amanhã. O que você acha da guerra? E os candidatos a presidência da república? E a novela? E o extermínio em série? Tenho que estudar para meu doutorado. Tenho que comprar roupas. Tenho.

Coitada da mãe, ela corria que corria, mas nunca pisou além de onde o vento a levava. Nunca tinha ido à Europa, nem à capital. Nem tinha capital, só contava centavos. E pela milésima primeira vez na vida fez sua tradicional broa de milho, a última. A experiência são quilômetros de distância a mãe pensava.

E a mãe, tomando o remédio para o coração, dizia:

- Vai correr! Vai correr!

- Estou construindo minha casa.

E a mãe, tomando o remédio para a memória, dizia:

- Vai correr! Vai correr menino!

E a mãe esqueceu-se de tomar o remédio para a memória. Esqueceu que o menino cresceu e envelheceu, e continuo dizendo:

- Vai correr menino! Vai correr!

O menino homem estava a navegar, brincando de dominar o mundo. Conheceu lugares lindos, assistiu a muitos filmes, leu muitos livros. Fez muitos amigos, todos muito bonitos, felizes e amáveis. Acessou as informações que moviam o mundo. Era o menino global, conectado com os quatro cantos do mundo. Acessou as verdades, as teorias, as fórmulas e os códigos.

A mãe já não falava mais a língua do estrangeiro dentro de casa. Ninguém varria o chão, nem trocava o lençol da cama. Ninguém regava as flores que ficava sobre a geladeira. A tradição da broa de milho se perdeu. Ninguém corria mais. O vento cansou de bater na porta e foi soprar em outra freguesia. A mãe morria, era isso que ela fazia, morria. Morria que morreu. Lá se foi a tradição, lá se foi a memória. E a mãe falhou na educação do filho, não lhe ensinou o que aprendeu em sua pobre infância de menina encardida, correr. Era o que elas faziam antigamente.
Corriam. Não pela pressa, nem pela chegada, mas pela corrida, pelo vento, pelo sol, pela chuva, pela praia, pela montanha, pela terra, pela vida.

E o menino que não sabia correr não pode correr para salvar a mãe das traças do tempo que a devoravam.

sábado, 28 de julho de 2012

A rodoviária

Eu nunca sou quem eu gostaria de ser.
Tudo é muito rápido,
passa que nem vejo,
ou muito lento,
passa e nem chego.
A paisagem é de árvore.
Árvore        Árvore       Árvore...
cópias         cópias        cópias....
Várias delas
tão iguais, tão regulares
tão conformadas como árvores.
Vestidas conforme a moda, verde e marrom.
elas me olham
eu passo e elas ficam.
mas eu passo e não passo
eu continuo no mesmo lugar, alojado em mim.
sentado na poltrona, com os pés
descalçados e as mãos no joelho,
sem ato,
sem salto.
O poeta me diz para ver
o mundo com singularidades
para "transver" o mundo,
que sou mutável e mutante
mas minha bunda não sai do lugar
quem pisa no mundo por mim são
as rodas do ônibus. A rodas sim
essas rodam pelo mundo.
Engraçado, eu pareço rodar
repetidas vezes no mesmo chão
uma barata tonta é engraçada.
mas eu não queria ser uma barata
já foram antes de mim.
eu nunca sou quem gostaria de ser
talvez o problema seja gostar de ser
gostar não está tão gostoso ultimamente
e tudo segue rápido
tudo reduzido pela janela do ônibus
tudo quadrado
vejo árvores, fórmulas e explicações
as respostas já enxeram o porta malas,
a mala
e a história
nada fantástico
nenhum mistério.
O meu olho está defeituoso ou regulado?
eu desaprendi a olhar, como disse o poeta.
há algo muito errado em ver
verdades pela janela
na próxima parada eu paro
e desço
vou rodar pela rua
vou conversar com a roda
pisar no espinho, no desconhecido
O olhar do leigo, o pé torto.
vou guardar para depois quem
eu gostaria de ser - aquele que nunca sou.
ultimamente gostar virou compromisso
rotina diária, rota já percorrida
corrida até a esquina.
Não vou gostar por hoje
Agora eu vou gozar
sem lugar para chegar
lá onde moram as perguntas
o fantástico está no incerto.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A cura não-cura.


O sol voltou a se abrir
Eu voltei a não entrar.
A chuva voltou a pingar
Eu a continuar seco.
Caiu com a chuva, mas longe da chuva.
Chove. Chove. Chove.
A teia de aranha é uma boa cama.

Ela dizia:
- Você tem uma boa relação com a natureza.
- Mas não é natural, é social. Isso não pode ser natural, essa azia que não passa nunca. Eu precisaria de outra boca, outro estômago, outros intestinos para digerir os frutos do homem. Não era para eu estar assim.
- É gastrite?
- mas meu nariz também dói. A respiração está comprometida.
- Está gripado?
- Não. É sem muco. É algo seco.
- Febre?
- É algo frio. Distante de mim. Dói quando eu abro o olho.
- Então é enxaqueca?
- Não, a cabeça nem uso mais. Nem pesa. Não serve para nada. Resolvi tirá-la, guardo junto às fotografias do passado.

E ela continuava a tentar me convencer de que o que eu sentia era uma doença. Mas era difícil encontrar um nome que combinasse com o que eu sentia. Deveria inventar um nome para ter domínio sobre meu estado, mas não queria dominar mais nada. Deixa assim, sem nome, sem compreensão, sem estabilidade, sem remédio.

E ela dizia:
- Deve ser diarréia.
- Não. Cheira igual, mas algo esvaziado. Algo afundado, frio. Começa no estômago e vai escavando até o coração e membros. O cérebro já não há. Tem cura?

(Até a instabilidade é uma questão de fé. Até o não-lugar desconstruído pela terceira vez é uma questão de fé. Buscar a doença é uma maneira de se curar)

- Não tem cura menino. É social. Estás todo esburacado.
- Então eu sou um buraco mesmo?
(Agora eu busco nomes)
- Não, você não é um buraco. És o vão do buraco. A parte que não se pisa, que só cai. A parte desgrudada. A parte do buraco sem terra alguma.