domingo, 16 de setembro de 2012

O menino que virou lembrança de si mesmo.

           A culpa de tudo foi de Doralice, ela que invadiu a memória do menino sem permissão. E não saia de lá por nada. O menino então resolveu apagá-la, foi à livraria e comprou uma borracha. Uma borracha que apagava gente.
O menino queria apagar a lembrança de Doralice. Apagou a própria cabeça, só deixou o pescoço. Já não via, ouvia e nem falava, mas ainda lembrava. O menino teve que apagar um pedaçinho do pescoço, criou um buraco para a comida entrar. É difícil comer sem cabeça, mas ele se acostumou com o tempo. Foi então que começou a comer pedras, tudo que ele achava no chão comia. Coisas esquecidas, rabiscos rabiscados e intermináveis, as coisas esquecidas antes do fim. Ele se alimentava de esquecimentos.
As crianças do bairro riam do menino sem cabeça, chamavam-no de Palito de fósforo, mas para quê serve um palito de fósforo sem cabeça?
         O problema maior é que ele ainda lembrava-se de Doralice, a menina das lembranças. Se apagar a cabeça não adiantou, por que não apagar o coração. Sua razão estava falha desde que a cabeça virou pó. Sem piedade, apagou o coração. Por sorte não morreu, agora ele comia pelo buraco do coração. As meninas riram, falaram que ele não se apaixonaria mais na vida e que nenhuma menina iria amar alguém sem coração. O amor vive de trocas, se tu não tens um coração para me dar, nada vale amar. O menino nem tinha olhos para as outras meninas, só lembrava-se de Doralice, essa sim tinha uma relação estreita com as lembranças.
       O menino queria apagar as lembranças. As lembranças que doíam à noite. Mas onde mora a lembrança? Será que a Doralice mora onde a lembrança mora? Será que elas dividem quarto? O menino só queria apagar o quarto onde a lembrança e a Doralice dormem. Mas o menino não sabia apagar memória, na escola só o ensinaram a apagar palavras e números, coisas de lápis, não da vida.
         Sem cabeça e sem coração o menino resolveu apagar seu pênis. Foi uma ação engajada, queria apagar qualquer questão de gênero. Uma busca por liberdade, sem classificações e estereótipos. Busca em vão, coitado. Quando ele apagou o pênis toda a cintura apagou-se também. Foi uma confusão. As pernas estavam livres e começaram a correr por todas as direções. Eram pernas que andavam sozinhas. Eram pernas que andavam com as próprias pernas, o que não deixa de ser liberdade. Teve um dia que a perna esquerda saiu para comprar um cigarro e nunca mais voltou.
         Após duas semanas o menino ficou assim: sem uma perna, sem a cintura, sem o coração e sem a cabeça, mas ainda era um menino bonito. O problema, mais uma vez, é que a lembrança de Doralice permanecia forte. Acho que com a ausência do coração e da cabeça sobrou mais tempo para a lembrança de Doralice.
       Doralice, a menina que vivia lembrando-se da vida, do tempo de criança, foi morar na lembrança do menino, lembrança tão forte e tão grande que acabou por apagar o menino por inteiro.
Sim, numa gélida noite o menino resolveu se apagar por inteiro, mesmo sem a mínima noção do que é o ser inteiro. Apagou o pescoço, como quem se suicida na forca. Apagou a perna direita, o peito, a barriga, a braço esquerdo, o braço direito. Não sobrou um pelinho para contar a história. O menino sumiu.
Apagou tudo, mas esqueceu das lembranças, a borracha não chegou lá. E o menino que não tinha pulmões para respirar e nem pele para coçar virou memória, virou lembrança. Foi morar no espaço e tempo da lembrança. E é lá que todos os sábados à tarde ele encontra Doralice para tomar um sorvete e lembrar dos tempos de meninice.

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