A culpa
de tudo foi de Doralice, ela que invadiu a memória do menino sem
permissão. E não saia de lá por nada. O menino então resolveu
apagá-la, foi à livraria e comprou uma borracha. Uma borracha que
apagava gente.
O menino queria apagar a lembrança de Doralice. Apagou a própria
cabeça, só deixou o pescoço. Já não via, ouvia e nem falava, mas
ainda lembrava. O menino teve que apagar um pedaçinho do pescoço,
criou um buraco para a comida entrar. É difícil comer sem cabeça,
mas ele se acostumou com o tempo. Foi então que começou a comer
pedras, tudo que ele achava no chão comia. Coisas esquecidas,
rabiscos rabiscados e intermináveis, as coisas esquecidas antes do
fim. Ele se alimentava de esquecimentos.
As
crianças do bairro riam do menino sem cabeça, chamavam-no de Palito
de fósforo, mas para quê serve um palito de fósforo sem
cabeça?
O
problema maior é que ele ainda lembrava-se de Doralice, a menina das
lembranças. Se apagar a cabeça não adiantou, por que não apagar o
coração. Sua razão estava falha desde que a cabeça virou pó. Sem
piedade, apagou o coração. Por sorte não morreu, agora ele comia
pelo buraco do coração. As meninas riram, falaram que ele não se
apaixonaria mais na vida e que nenhuma menina iria amar alguém sem
coração. O amor vive de trocas, se tu não tens um coração
para me dar, nada vale amar. O menino nem tinha olhos para as
outras meninas, só lembrava-se de Doralice, essa sim tinha uma
relação estreita com as lembranças.
O menino
queria apagar as lembranças. As lembranças que doíam à noite. Mas
onde mora a lembrança? Será que a Doralice mora onde a lembrança
mora? Será que elas dividem quarto? O menino só queria apagar o
quarto onde a lembrança e a Doralice dormem. Mas o menino não sabia
apagar memória, na escola só o ensinaram a apagar palavras e
números, coisas de lápis, não da vida.
Sem
cabeça e sem coração o menino resolveu apagar seu pênis. Foi uma
ação engajada, queria apagar qualquer questão de gênero. Uma
busca por liberdade, sem classificações e estereótipos. Busca em
vão, coitado. Quando ele apagou o pênis toda a cintura apagou-se
também. Foi uma confusão. As pernas estavam livres e começaram a
correr por todas as direções. Eram pernas que andavam sozinhas.
Eram pernas que andavam com as próprias pernas, o que não deixa de
ser liberdade. Teve um dia que a perna esquerda saiu para comprar um
cigarro e nunca mais voltou.
Após
duas semanas o menino ficou assim: sem uma perna, sem a cintura, sem
o coração e sem a cabeça, mas ainda era um menino bonito. O
problema, mais uma vez, é que a lembrança de Doralice permanecia
forte. Acho que com a ausência do coração e da cabeça sobrou mais
tempo para a lembrança de Doralice.
Doralice,
a menina que vivia lembrando-se da vida, do tempo de criança, foi
morar na lembrança do menino, lembrança tão forte e tão grande
que acabou por apagar o menino por inteiro.
Sim,
numa gélida noite o menino resolveu se apagar por inteiro, mesmo sem
a mínima noção do que é o ser inteiro. Apagou o pescoço, como
quem se suicida na forca. Apagou a perna direita, o peito, a barriga,
a braço esquerdo, o braço direito. Não sobrou um pelinho para
contar a história. O menino sumiu.
Apagou tudo, mas esqueceu das lembranças, a borracha não chegou lá.
E o menino que não tinha pulmões para respirar e nem pele para
coçar virou memória, virou lembrança. Foi morar no espaço e tempo
da lembrança. E é lá que todos os sábados à tarde ele encontra
Doralice para tomar um sorvete e lembrar dos tempos de meninice.
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