Era um menino arteiro e sorridente, mas a mãe nunca soube dizer o
que veio primeiro, a arte ou o sorriso. Todos queriam saber se ele
sorria porque era arteiro, ou era arteiro porque vivia sorrindo. Essa
necessidade de ordenar os fatos. Alinhar o tempo. “Cronologizar”
os sentidos. Mas o menino não. Ele não gostava de fórmulas, de
ordens, de regras, de filas, de respostas universais e de verdades. O
menino gostava da desordem. E o sorriso era sua resposta para a
cientificidade do mundo.
Na
escola, nas aulas de matemática, o menino contava os números assim:
1, 2, 4, 15, 20, 28, 5,
8, 1, 44, 12...
Ele não gostava de
reproduzir.
Nas
aulas de português também era assim, e a professora, coitada,
insistia em dizer:
- Dislexia.
Só
porque o menino gostava de trocar os sentidos das coisas, gostava de
pintar de azul as coisas. Escrevia um mundo seu, inventava suas
verdades mutáveis, e isso era a liberdade para ele. Gostava de
inventar textos. Mas a língua pronta e acabada não gostava de
beijá-lo, não permitia ousadias. E as professoras o presenteavam
com um zero. Mas o menino gostava do zero, tão misterioso, tão nem
aí para o mundo.
Até
no amor era assim, misturava tudo. Matrimônio, amor, amigos, paixão,
namoro, tesão, colegas, afeto, amantes, paqueras, e até mesmo o
desconhecido. Tudo era passível de ser amado, em qualquer lugar, em
qualquer posição. A ordem não importava.
Mas
o menino queria ver todo mundo junto. Todos seus amores sob o mesmo
céu. Começou a rasgar despedidas, a cortar o tecido que tecia a
solidão. Não por egoísmo, apego ou ânsia de domínio alheio, o
domínio acompanha a ordem, e o menino gostava da desordem. Gostava
de estar no canto das borboletas, no canto das ondas, no canto dos
araçás. Gostava de escutar o canto do quarto, o canto da estrada, o
canto da lagoa.
E
assim o menino começou a rasgar saídas, saidinhas e saias. Não por
assédio, mas o menino cansou de ver pernas o deixarem só. E rasgou
a saída na altura do joelho.
Para que você não
saia.
Para que ele não saia.
Para que ela não saia.
Para que a saída não
saia.
E
a dança libertou as pernas, e a saia rasgada libertou a dança. E
cada um bailou conforme o seu eu conduzia, era o encontro entre o Eu
e o Outro, que era a música. E a dança desordenou a métrica. Cada
um foi para um lado, para um canto, para um morro, para um mar, para
um céu, para um vento. E ninguém mais se viu, ninguém mais se
falou, ninguém mais se amou. A saia rasgada libertou a liberdade..
E
agora sim o menino podia dormir sem medo, pois só a liberdade não
deixa ninguém só à noite.
Parabéns pelo blog Ailton! Lindos textos muito bem escritos =) Sucesso, beijos
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