terça-feira, 31 de julho de 2012

O menino que não sabia correr


E a mãe, mexendo a massa do bolo de chocolate, olhava o menino com olhos ternos.

- Corre menino! Vai correr e brincar lá fora.

E o menino, sem olhar para a mãe, dizia:

- Lá fora é muito pequeno mãe, aqui eu tenho acesso ao mundo. Navego aonde eu quero. Estou brincando de carrinho com um japonês.

Coitada da mãe, nunca tinha brincado com uma menina da cidade ao lado, quem dirá com um japonês. Nem de boneca ou carrinho tinha brincado. Ela corria que corria antigamente. Os morros eram mais espaçosos. O sol costumava trabalhar mais, não dava lugar para tantas sombras. E as ruas, assim como os pés, eram todas descalçadas, não havia essa concretude acinzentada artificialmente pintada de colorido. A mãe navegava no vento.

E a mãe, fazendo uma blusa de tricô, dizia:

- Vai correr menino. Vai dançar e namorar um pouco.

- Lá fora é muito antigo mãe, fede a mofo. Aqui é aberto, lá é fechado. Lá fora é doentio e empoeirado. E estou namorando mãe, a Fátima mora na Bélgica, estou conversando com ela.

A mãe já batia os ovos do bolo de chocolate com dificuldade, mas continuava seus afazeres domésticos. Permanecia varrendo o chão sem sujeira. Ninguém sujava o chão. Ninguém saia de casa. Ninguém chegava da rua. Era um relacionamento a distância dentro de casa, entre a mãe e o menino. O mundo que separava os dois era a geração, o progresso, a evolução. A experiência de trinta anos. O menino tinha o acesso ao mundo na ponta dos dedos. A mãe tinha as agulhas de tricô, a colher de pau que mexia a panela. O mundo era pequeno para o menino. A mãe fazia a tradicional broa de milho herdada pela sua bisavó. A mãe que corria que corria, já não corria mais, se arrastava com o tempo. Morria com o tempo.

E a mãe, penteando os cabelos brancos, dizia:

- Vai correr menino! Vai trabalhar, viajar, nadar. Vai correr menino!

- Calma mãe, para quê tanta pressa? Estou vendo a cotação do dólar. Analisando os juros dos imóveis. Estou prestes a fechar um negócio importantíssimo numa reunião nos Estados Unidos.  Além do mais, você já viu essa exposição no museu do Louvre? E essa comida tailandesa? E esse perfume francês? Vou casar amanhã. O que você acha da guerra? E os candidatos a presidência da república? E a novela? E o extermínio em série? Tenho que estudar para meu doutorado. Tenho que comprar roupas. Tenho.

Coitada da mãe, ela corria que corria, mas nunca pisou além de onde o vento a levava. Nunca tinha ido à Europa, nem à capital. Nem tinha capital, só contava centavos. E pela milésima primeira vez na vida fez sua tradicional broa de milho, a última. A experiência são quilômetros de distância a mãe pensava.

E a mãe, tomando o remédio para o coração, dizia:

- Vai correr! Vai correr!

- Estou construindo minha casa.

E a mãe, tomando o remédio para a memória, dizia:

- Vai correr! Vai correr menino!

E a mãe esqueceu-se de tomar o remédio para a memória. Esqueceu que o menino cresceu e envelheceu, e continuo dizendo:

- Vai correr menino! Vai correr!

O menino homem estava a navegar, brincando de dominar o mundo. Conheceu lugares lindos, assistiu a muitos filmes, leu muitos livros. Fez muitos amigos, todos muito bonitos, felizes e amáveis. Acessou as informações que moviam o mundo. Era o menino global, conectado com os quatro cantos do mundo. Acessou as verdades, as teorias, as fórmulas e os códigos.

A mãe já não falava mais a língua do estrangeiro dentro de casa. Ninguém varria o chão, nem trocava o lençol da cama. Ninguém regava as flores que ficava sobre a geladeira. A tradição da broa de milho se perdeu. Ninguém corria mais. O vento cansou de bater na porta e foi soprar em outra freguesia. A mãe morria, era isso que ela fazia, morria. Morria que morreu. Lá se foi a tradição, lá se foi a memória. E a mãe falhou na educação do filho, não lhe ensinou o que aprendeu em sua pobre infância de menina encardida, correr. Era o que elas faziam antigamente.
Corriam. Não pela pressa, nem pela chegada, mas pela corrida, pelo vento, pelo sol, pela chuva, pela praia, pela montanha, pela terra, pela vida.

E o menino que não sabia correr não pode correr para salvar a mãe das traças do tempo que a devoravam.

sábado, 28 de julho de 2012

A rodoviária

Eu nunca sou quem eu gostaria de ser.
Tudo é muito rápido,
passa que nem vejo,
ou muito lento,
passa e nem chego.
A paisagem é de árvore.
Árvore        Árvore       Árvore...
cópias         cópias        cópias....
Várias delas
tão iguais, tão regulares
tão conformadas como árvores.
Vestidas conforme a moda, verde e marrom.
elas me olham
eu passo e elas ficam.
mas eu passo e não passo
eu continuo no mesmo lugar, alojado em mim.
sentado na poltrona, com os pés
descalçados e as mãos no joelho,
sem ato,
sem salto.
O poeta me diz para ver
o mundo com singularidades
para "transver" o mundo,
que sou mutável e mutante
mas minha bunda não sai do lugar
quem pisa no mundo por mim são
as rodas do ônibus. A rodas sim
essas rodam pelo mundo.
Engraçado, eu pareço rodar
repetidas vezes no mesmo chão
uma barata tonta é engraçada.
mas eu não queria ser uma barata
já foram antes de mim.
eu nunca sou quem gostaria de ser
talvez o problema seja gostar de ser
gostar não está tão gostoso ultimamente
e tudo segue rápido
tudo reduzido pela janela do ônibus
tudo quadrado
vejo árvores, fórmulas e explicações
as respostas já enxeram o porta malas,
a mala
e a história
nada fantástico
nenhum mistério.
O meu olho está defeituoso ou regulado?
eu desaprendi a olhar, como disse o poeta.
há algo muito errado em ver
verdades pela janela
na próxima parada eu paro
e desço
vou rodar pela rua
vou conversar com a roda
pisar no espinho, no desconhecido
O olhar do leigo, o pé torto.
vou guardar para depois quem
eu gostaria de ser - aquele que nunca sou.
ultimamente gostar virou compromisso
rotina diária, rota já percorrida
corrida até a esquina.
Não vou gostar por hoje
Agora eu vou gozar
sem lugar para chegar
lá onde moram as perguntas
o fantástico está no incerto.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A cura não-cura.


O sol voltou a se abrir
Eu voltei a não entrar.
A chuva voltou a pingar
Eu a continuar seco.
Caiu com a chuva, mas longe da chuva.
Chove. Chove. Chove.
A teia de aranha é uma boa cama.

Ela dizia:
- Você tem uma boa relação com a natureza.
- Mas não é natural, é social. Isso não pode ser natural, essa azia que não passa nunca. Eu precisaria de outra boca, outro estômago, outros intestinos para digerir os frutos do homem. Não era para eu estar assim.
- É gastrite?
- mas meu nariz também dói. A respiração está comprometida.
- Está gripado?
- Não. É sem muco. É algo seco.
- Febre?
- É algo frio. Distante de mim. Dói quando eu abro o olho.
- Então é enxaqueca?
- Não, a cabeça nem uso mais. Nem pesa. Não serve para nada. Resolvi tirá-la, guardo junto às fotografias do passado.

E ela continuava a tentar me convencer de que o que eu sentia era uma doença. Mas era difícil encontrar um nome que combinasse com o que eu sentia. Deveria inventar um nome para ter domínio sobre meu estado, mas não queria dominar mais nada. Deixa assim, sem nome, sem compreensão, sem estabilidade, sem remédio.

E ela dizia:
- Deve ser diarréia.
- Não. Cheira igual, mas algo esvaziado. Algo afundado, frio. Começa no estômago e vai escavando até o coração e membros. O cérebro já não há. Tem cura?

(Até a instabilidade é uma questão de fé. Até o não-lugar desconstruído pela terceira vez é uma questão de fé. Buscar a doença é uma maneira de se curar)

- Não tem cura menino. É social. Estás todo esburacado.
- Então eu sou um buraco mesmo?
(Agora eu busco nomes)
- Não, você não é um buraco. És o vão do buraco. A parte que não se pisa, que só cai. A parte desgrudada. A parte do buraco sem terra alguma.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

O menino que queria viver com a saudade


Nunca tinha sentido uma saudade tão bonita na minha vida.
Daquelas que faz entortar a ponta do tempo
Que faz encher os pulmões
encher o vazio
esvaziar o enchido
que faz enxergar a chegada
e o vazio
e o silêncio
e a caminhada sobre o vazio
                                                                                          O silêncio é invisível
É bem bonito
      Eu o vi.
que faz quadrificar o redondo
              igual um rio cor de arco-íris
              igual uma xícara toda cheia de rio
que faz ter vontade de brincar
de amarelinha
de vermelhinha
de Maria Chiquinha
a vontade de brincar de ser vento.
de ser chuva
de ser chuva que cai na rua de barro
de ser chuva transformada em poça
de ser chuva que a menina tira para dançar
de ser chuva guardada pelo guarda-chuva
De proseiá  com o vento
De tagarelá com as nuvens
Saber como anda a família da lua
De beber com o passarinho
De dormir com o sol
                                                                                                         Ele dorme de dia às vezes
                                                                                                                       Toda terça-feira
                                                                                  Um pouquinho antes de eu ir comprar pão
Sobre essa saudade que é tão bonita
Mas tão bonita
Que me faz querer casar com ela
E tudo que eu tenho eu divido com a saudade
A poeira
O resto
O deixado para depois
O esquecido
O meu umbigo
O dedão do pé
Essa rapariga que é tão formosa
E sem forma
sem molde
sem ciência
sem titulação
sem replicabilidade
sem comprovação
fica só no dito
no vivido
quem quiser acreditar que acredita
pode não acreditar também
                                                                                                                  tenho um amigo que
                                                                                                                      engoliu a verdade
                                                                                                                              se engasgou
                                                                                                                                 e morreu.               
é tudo invenção
tudo coisa da cabeça de quem não tem o que fazer
mas ela é linda
Que eu quero viver com ela
me encher dela
me esvaziar dela
dormir com ela
comer com ela
Come-la e dormi-la
Fazer tudo com essa saudade que é tão bonita
E que me faz bonito.

terça-feira, 3 de julho de 2012

A ousadia do tempo.


O tempo está arteiro, está vestido de sol em pleno inverno.
Está usando biquíni na missa e sunga no jantar com a sogra.
O tempo está curto, do tamanho da kitnet,
sem tempo para artes.
O tempo não combina mais com ninguém,
não combina nem com o meu tempo,
se um usa chinelo o outro manda frio,
se um usa cachecol o outro manda calor,
se um pede pinhão o outro manda praia,
se um pede sorvete o outro manda lareira.
Não marca mais horário,
está com a agenda cheia, não tem tempo.
O tempo está entorpecido, está vulgar e ousado,
está colorindo o próprio arco-íris,
mas as paredes espremem o não tempo que sobrava.
Não restou mais nada.
E pela janela eu vejo o tempo, ele está a passar,
está a passear.
Arteiro, serelepe, sozinho, sem tempo para conversas à toa sobre o conhecimento.
Sobre a ciência, sobre as perguntas e respostas.
Eu abano a mão, faço gestos, sorrio, assovio, chamo, mas ele passa
e não para,
e não vê,
e não escuta.
Todo vestido de sol, de azul, cheirando liberdade,
esse cheiro que me tenta, que me alucina,
que me alimenta.
Pensei até em abrir a porta e me vestir de azul.
Perfumar-me com o cheiro da rua.
Esse tempo está ousado.
Estou pensando em combinar com ele, sem avisá-lo.