terça-feira, 19 de novembro de 2013

Os óculos da modernidade.


     Manuelita, quando criança, tinha o curioso costume de errar os caminhos. Sair dos trilhos. Não seguia o trenzinho na escolinha. A professora gesticulava, fazia sinal com as mãos, e a menina não ligava, continuava o seu trajeto, que até poderia chamar de seu. Manuelita era míope, seu mundo era distorcido, abria portas em muros. Era uma visão de mundo distinta, um tanto livre de possibilidades. Mas ainda banguela a menina ganhou seu primeiro óculos. Após algumas parafusadas e algumas colagens. Desmontagem e montagem. A nova cabeça estava pronta, com suas invisíveis lentes.
       Na escola foi motivo para gostosas risadas de criança. Logo foi rotulada, enquadrada dentro de um insignificante nome, que a anulou. Ela era tantas outras coisas, poderia ser tantas outras, mas amolduraram-na Quatro olhos, assim residiu sua identidade. Ao decorrer dos anos recebeu novos nomes.
    A menina regularizou seu olhar. Olhar quadrado, enquadrava as paisagens, as pessoas, os sentimentos. De forma tão quadrada que a menina organizava o mundo em caixas de fósforo. Tudo cabia ali dentro, tudo era passível de simplificação e banalização até atingir os determinados limites da caixinha. As fronteiras dos aros de aço. A vida não era boa, mas a menina acostumou-se. Ver o mundo mediado pelos fundos de garrafa não era de todo mau, livrava-a da responsabilidade de criação. E com preguiça ou medo de ver, a menina enquadrava os outros. Era um modelo pronto de viver em sociedade. Um modelo pré-fabricado, preestabelecido. Os óculos viam por ela.
       Manuela, que perdeu o ita do nome por já ser adolescente, levava uma vida tranquila até receber a atormentadora notícia de seu oftalmologista. Era hora de despedir-se do óculos. Era o fim das lentes e do aro vermelho sangue. Um medo apossou a menina, como se um sentimento de solidão assolasse seu íntimo. Agora era só ela e o mundo. Como lidar com a possibilidade do todo? Sem o enfoque da lente e do aro escolhido com tanto carinho? A menina hesitou uma, duas, três vezes, mas percebeu que não teria escolhas, afinal ela nunca foi de ter muitas escolhas. Era cair no precipício ou pular no precipício.
      Ver com os próprios olhos intimidava-a. Tirou os óculos. Fechou os olhos. Inspirou, expirou. Abriu os olhos, primeiro o direito, depois o esquerdo, porque ela aprendeu que a direita é melhor. O que viu não a surpreendeu. O mesmo muro branco sem porta em sua frente. Ainda via quadrados. Os olhos lacrimejaram, ela os massageou. Os quadrados aumentaram, multiplicaram, tantos estereótipos, tantas fórmulas e modelos, condutas e posturas para todos os lados. Tudo racionalmente arquitetado. As certezas perseguiam-na, gritavam em seus ouvidos. Não tinha para onde fugir. Era como se a professora a obrigasse seguir a fila.
Quis arrancar a própria roupa, entregar-se a nudez. Quis arrancar a própria pele, aquela capa que escondia um não sei o que, que a agonizava por dentro. Com medo, como quem levada pela gravidade, correu. Corria que corria pela rua, sem cessar nem cansar.
Entre os passos acelerados percebeu que todas as pessoas corriam. E todas passavam e tudo era passageiro. Paisagens líquidas entre os dedos. Óculos sólidos estavam no chão, o caos estava instaurado. Todos corriam. E todos corríamos sem saber para onde, nem porque.