domingo, 29 de setembro de 2013

Do esquecimento.

Saiu porta e corpo afora
Fora de sua história.
Para do pingo da chuva pingar-se
diluir o que ficou
daquilo que já não há.
E levar para além do nada o que virá
Assim foi-se o sangue
o medo
a roupa, o batom
o cabelo
a casa e o tempo.
Só ficou ali perdido,
num torto canto escondido
do pensamento
o esquecimento.
Tal qual o corpo molhado
esperando se secar.








sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Poema para Caracolina escrito em Manoelês.

Ela tem intimidades para pássaros
Tem olhar de águia
de achar um barco filhote no meio do oceano
de enxergar um despropósito maduro na árvore
                       [despropósito podre já não presta.
Tem anseios de João de barro,
arquiteta,
de artesã arteira que era
construtora de paisagens de janela
anseios que nascem de ser artista
e de ser criança aprendiz, infantil.
Desabrocha-se primavera
que se abri para flores
e para cheiros,
as abelhas são gratas
e a presenteiam com mel.
Ela converte o presente em voz
todas as melodias doces
musicalmente melada
como o gorjeio de um pássaro amante
e livre.
Tem dom de céu
de ser voo de arara
Tem dom de chão
de ser rastro de caracol
Caracolina de asas, é assim conhecida
comunhão entre ar e terra.
Ela ri que ri
porque assim o sol se encoraja para o mundo iluminar
                           [ela beberica o sol sem que ele perceba.
Tem intimidade com as paisagens
concebe todas de fantasia fantástica
inventando-se ao vento com asas sempre abertas.
Ela tem intimidade de pássaros
de ser ave ela vive
me ensina a ser andorinha?

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nado-me em nada.

Os eus são muitos
transbordam pelos bolsos
multiplicam os espelhos
e os vultos.
Caem pelas calçadas
varrem as madrugadas.
Ultrapassam os dias da semana
sou mais do que sete.
Já não sei quando mudo
segunda se confunde com quarta
Raimunda se confunde com Marta.
Amores eu nem cuido.
Tantos eus que nunca são nós
paralelas livres de nós
uma parede feita de janelas
vários sóis
várias paisagens e olhares.
Multiplicado em esquadros, um prisma.
Existência sem guarda-sol.
Composição cubista
diferentes perspectivas.
Este que aqui está
desfaz-se no agora
Este eu só serve para se desfazer
inutensílio despropositado
água de chaleira
vapor de banheira
desmanchar-se em sobrado
até sobrar o nado afogado
Desconstrução poética
inicia pelos pés descalços
 no chão
finaliza nas pontas dos dedos
 da mão
somem a tatuagem
o piercing
o cabelo colorido
some a própria margem.
Quando me desfaço
me esqueço
encontro o nada
lugar de tudo
em letras esparramado.
Acendo o esqueiro
e vejo o outro-não-mais-eu
morto no que era meu
com seu destino traçado
em traços versados
em traças.
Eu mais uma folha de papel
pronto para virar lugar de lixeira
ou lembrança poética na parede.

 

domingo, 15 de setembro de 2013

Aula de gramática

- Pai? Paaai!
- O que é Dourival? Por que chegou assim agitado da escola? O que você aprontou dessa vez?
Já não disse para obedecer as normas da escola?
- Não pai, é outra coisa. Aprendi algo muito interessante hoje
- Ah! Fala sério Dourival. Na escola? Só se foi no recreio.
- Na aula pai, com a professora.
- Sério mesmo? Aprendeu algo na escola?
- Sim pai. Aprendi gramática normativa. E tudo ficou tão claro. A professora disse que existe a língua e existe a gramática. A gramática é da língua, mas as pessoas acham que é tudo a mesma coisa e pensam que a gramática normativa é a língua. Então, esquecem a língua e valorizam a gramática, numa tentativa frustrada de naturalizar a gramática normativa em seus usos diários.
- E?
- Como assim, não sacou? É igualzinho no amor. Eu perguntei pra professora o que era a língua, ela disse que não sabia, pois era professora de português e ali na escola só podia me apresentar a gramática.
- Mas e o amor Dourival, o que tem a ver com tudo isso?
- Ninguém sabe o que é o amor direito pai. Mas a maioria das pessoas está casada ou namorando, todos vivem um relacionamento. O amor é a língua e o relacionamento é a gramática normativa. As pessoas acabam confundindo amor e relacionamento e pensam que namorar ou casar é amar. E no fim, esquecem o amor e vivem o relacionamento. Vivem as regras da gramática pensando que tem algo a ver com o amor. Certo ou errado. Permitido e não permitido, tudo padronizado. Regras arcaicas. Tem até sua metalinguagem: Fidelidade, devoção, honestidade, exclusividade de tudo. Todas essas palavrinhas que somos obrigados a decorar. Hoje eu decorei Hobigeto Direto na aula de gramática. E você pai, teve aula de relacionamento ou de amor hoje?
- Bem, dormi no sofá essa noite, devo ter errado algo, isso é relacionamento não é?
- Pai, nem se você acertasse você acertaria. Regras são regras, acordadas nem por você e muito menos pela mamãe, mas por que vocês a aceitaram?

A aula hoje foi boa, pena que a professora não saiba. Professor de português e a língua portuguesa devem ser namorados. Namorados que esqueceram o amor e vivem nas regras do relacionamento.

Interessante, para tudo deve existir uma gramática. Por isso que essa vida anda tão chatinha. 

domingo, 8 de setembro de 2013

Dever matinal

        Manuezito mantinha birra com a mãe. Ele queria brincar com os meninos da rua e ela apontava o chão da cozinha para varrer. Sempre foi assim, desde seus primeiros anos de vida. Voz grave e certeza no olhar, há coisas para fazer menino. Era o legado de sua tataravó, passado de geração em geração. E o menino fazia. Birriava e fazia. Varria o chão da cozinha que era o lugar mais sagrado da casa, lavava as verduras, passava as roupas, penteava os cabelos dos irmãos após o banho. O menino cresceu e aquelas palavras ressoam em seu ouvido, como se o ontem fosse hoje, como se a barba no rosto não escondesse a meninice infantil. É que o mundo é mais do que um moinho, são vários. Aquela casa era o mundo da mãe, cheio de coisas para se fazer. Sujeiras injustas entre as panelas. Ainda há muita coisa para limpar nesse mundo. A vida é isso, pensa o menino, um mundo cheio de coisas para fazer, até não haver mais sujeiras na cozinha.