quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dias de Dourados.

O menino brincava na terra
a terra em que seu pai, seu avô
seus amigos e sua mãe nasceram
o menino brincava despropositado
desenhava na terra
e deixava um pedacinho do dedo em cada traço
o pai admirava a liberdade da infância
e refletia sobre a liberdade da liberdade.
Depois de uma hora o pai disse:
Prepare-se filho, amanhã vamos viajar
vamos todos para a morte.
O menino respirou fundo
encheu-se de alegria
e foi divulgar a notícia para as outras crianças:
Meninos e meninas, preparem o coração
amanhã vamos visitar a morte.

Todos ficaram muito ansiosos.

A imposição da felicidade.

O menino chegou em casa chorando
nem falou com a mãe
se trancou no quarto
para chorar um pouco mais
A mãe sabia que hoje era dia de provas
na escola.
Com cuidado foi ver o menino
- O que foi filho?
e o menino com lágrimas de raiva disse
caiu na prova um conteúdo que nunca tínhamos visto na escola,
por que a professora fez isso, mãe?
E o que ela fez filho?
A professora disse para nos organizarmos
em filas e sermos felizes.
E daí?
Daí que eu não sei como fazer isso
tenho medo de reprovar de ano.

sábado, 27 de outubro de 2012

O menino sem lei


O menino nasceu no entrelugar
na terceira margem do rio
mas nada tinha de literário.
O menino era margem de si mesmo
excluído da própria condenação
um olhar nulo
de um lugar nulo
daqueles ninguéns
que nascem com duas opções
ser um fora da lei
                              [bem comum por ali]
Ou ser um desleiado
Sem leis e direitos básicos
O esquecido legalmente
Sem direito
Sem escola
Sem energia
Sem palavra
Sem amor
Ser tapete
que além de ser pisado
serve para esconder a sujeira

Dúvida difícil.

O menino resolveu escrever suas leis
escrever sua vida
escrever uma outra opção
Mas o coitado desconhecia as letras
O sistema
               [Alfabético]
Não sabia escrever
Atravancou na primeira linha
Morreu na primeira esquina

O passarinho também morreu.

sábado, 20 de outubro de 2012

O menino e o político


O menino morava no mato.
No meio dos matos, porque eram vários matos
e várias distâncias.
Moravam o pai, a mãe e o menino.
o pai se chamava pai
a mãe, mãe
e o menino, menino.
O vizinho também se chamava vizinho
porque só tinha um.
o cachorro também era cachorro
e assim a vida seguia.
                                          Na economia dos nomes.
                                          A vida quase extinta
 
                                          a comida faminta
 
                                          e a palavra rara
                                          quase calada.
Na casinha de barro no meio do mato
só havia um lápis
por isso o menino tinha que inventar sua poesia
para que as palavras não acabassem antes do fim da linha.
O menino transgredia as palavras
escrevia com o dedo
nas nuvens
escrevia com o joelho
nas pedras
e com os olhos
no céu
 
ele fazia poesia fora do papel
E a terra o escrevia no barro
porque as palavras ali eram poucas
e porque eram poucas
o cachorro resolveu morrer
assim como fez o gato, a galinha e a mosca.
E com o passar do tempo as palavras iam morrendo
secando
sumindo
 
O pai e a mãe andavam preocupados
mas evitavam falar.
E na mudez mais seca vivida no mato
 
o menino ainda fazia poesia.
Se as palavras fossem fartas
e mãe chamaria o menino de maluco
de desordenado
de mau das ideias, mas o silêncio seguia.
E nesse tempo de silenciamentos
a casa de barro, no meio dos matos,
conheceu o político
era um homem alto e bonito
e cheio de palavras
chegou em boa hora
a mãe já estava quase morta, mesmo sendo uma palavra pequena
 
O político trouxe palavras e mais palavras
fartura sobre a mesa
todos se deliciaram
a casa estava cheia de promessas políticas
e promessas era uma palavra que o menino desconhecia.
Todos estavam felizes.

O menino com os olhinhos brilhando
e as ideias cheia de ideias
pediu a capa preta do super-herói político emprestada
o político riu,
isso chama-se paletó, para que você quer menino? – disse.
eu quero voar pelo céu e molhar o mundo com as minhas poesias
assim como você
que voou até aqui e nos molhou de palavras.
O político riu ainda mais e foi embora.

apesar das palavras do político
a mudez permaneceu 
 
e a seca secou.

Depois de um tempo o pai disse, mesmo sabendo que aquelas poderiam ser suas últimas palavras:
político é um animal que em quatro em quatro anos vem se reproduzir no mato.

O menino cresceu
virou um pequeno agricultor
planta e inventa
 palavras
virou poeta.

Pena que ele não pode voar sobre esse mundo afora.

O que você faz da vida?

Acho que Manoel de Barros
e outros poetas
só fizeram advocacia
porque as pessoas não acreditavam
quando eles diziam que o que faziam da vida
era poesia.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Aconteceu hoje.

Uma estudante do curso de literatura morreu engasgada, a caminho do hospital,
após ter tentado engolir um ouriço inteiro.
O tamanho do ouriço era o de um quadrado sem os quatro lados, dividido ao meio,
da cor azul e cheiro de nuvem.
A estudante tentou enfiá-lo
goela abaixo,
mas era impossível digerí-lo.

A mãe da vítima do ouriço assassino relatou que o sonho da filha era ser poeta.

A professora de teoria literária
não quis falar sobre o caso, mas demonstrou-se muito preocupada
com o ouriço.

O médico disse que o ouriço passa bem e alimenta-se com o coração da estudante.

sábado, 13 de outubro de 2012

Monólogo de meninos.

Eram dois meninos
cada um na sua infinitude.
Eram milhões de meninos
porque eram milhões de palavras
Outro que falava de despropósitos
Outro que falava de seriedades.
Fluidez e concretude.
Eles interagiam por meio do desentendimento.
Outro sorria, outro calculava
Outro construía, outro soprava
Outro planejava, outro lançava-se
outro era instinto
outro era cientista
Outro apontava, outro desconhecia
Outro inventava, outro também.
Era o próprio castigo de Deus, as chicotadas de Babel.
Mas como deus escreve o torto por linhas certas
Os meninos interagiam assim
Nas concordâncias do desentender
Cada um no seu tempo,
na sua cultura de desentender
e de insignificar as coisas
Porque os velhos já diziam:
Conversando a gente se arromba.
De um lado falava-se em peraltagens
Rãs, formigas, pássaros, árvores e cus.
Do outro lado falava-se em paradigmas,
Estereótipos, epistemologia e anus.
Outro se preocupava com o que se guardava
na caixa de pandora.
Outro se preocupava com o material da caixa,
para reproduzi-la.
Um mantinha o mistério
Outro criava as verdades, porque não descobria.
Descobrir a verdade é engraçado,
É supor que ela já existia.
Para outro experienciar o fantástico, já era o bastante.
Outro, outro, e mais outros outros.
Outros que incomodam
que apertam a nossa bunda, que nos fazem pular
e no pulo o chão muda
e é o medo da mudança do chão
que nos fazemos Narcisos.
Que mudamos os outros
deixando-os mudos.
É a pedagogia de significar as coisas
e decidir as palavras
e estabelecer os outros possíveis
mas os meninos se diziam
se diziam tanto
que tapar o ouvido
se olhar no espelho
foi preciso.
E as insignificâncias passaram a estabilizar sentido.
E a festa acabou
a luz apagou
não veio a utopia
e tudo mofou
sua doce palavra
se você gritasse
não existe porta
outros, e agora?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O menino e a janela do banheiro.

Entrar no espelho nunca foi o sonho do menino.
Se algum dia, talvez, o puxasse pela mão,
ele entraria. Assim como fez sua prima Alice.
Mas o que o menino sempre quis foi entrar na janela do banheiro.
A janela sim era fantástica.
Todos os dias ao tomar banho
                                              - Nem todo dia ele tomava banho.
o menino admirava a janela e sonhava
com o dia em que crescesse o suficiente para alcançar
o céu com as pontas dos dedos.
Lá dentro da janela havia um céu.
Azulado e alaranjado, tão iluminado
quanto um quadro impressionista.
Também tinham
nuvens
148 estrelas, o menino contou.
o dia e a noite.
Tinha uma lua, de diferentes sorrisos,
e volta e meia tinham cinco pássaros
Zé, Fí, Dí, Lu, Tom.
Tudo dentro da mesma janela
a mesma janela do banheiro.
Como pode ter um sol dentro de uma janela tão pequena?
O menino ficava maravilhado com isso.
A professora disse que o Sol tem cerca de 696.342 quilômetros de raio, muito maior que a terra.
Mas o menino discordou, ele falou que o sol é menor do que
sua janela do banheiro.
E Joana completou, se o sol é maior que o mundo, então
ele é do tamanho da vida.
A professora não entendeu nada.
Mas o menino retrucou, se o sol é do tamanho da vida, então
ele é do tamanho do cu de uma formiga.
A professora expulsou o menino da sala de aula, por ter falado palavrão.
O menino saiu da sala e nunca mais voltou.
Seus pais viajaram para a capital.
O menino chorou ao se despedir da janela,
se despediu do dia, do céu, do sol, da nuvem e do Tom, o único pássaro que por ali voava.
Coitado, não pode dar tchau à lua e à noite.
O menino cresceu longe da janela.
Virou astronauta,
amanhã fará sua primeira viagem espacial.
Não vai ao espaço para brincar de nadar no ar
Vai para lembrar do tempo que viajava dentro da janela
dos banhos demorados
das conversas com os pássaros
dos sonhos noturnos com a noite
e conseguir tocar o céu com as pontas dos dedos
para, finalmente, entrar na janela do banheiro.

Criança enrugada.

Ela estava sentada numa cadeira especial
no centro da mesa.
Nem mexia os bracinhos, as perninhas não encostavam no chão.
Estava com as cabeça levada
de bainho tomado e
pronta para dormir na caminha, que já estava com lençois postos.
O prato de mingau estava sob seus olhos.
Enquanto esperava o mingau esfriar aproveitou
para chorar um pouco.
Quando o mingau esfriou, gritou:
- Filha. Vem dá comidinha pra mim.
A filha estava ocupada, lavando louça e envelhecendo. Gritou para o filho.
- Filho. Vai dar mingau na boca de sua avó, está na hora da papinha.