Primeiro foram os pés que se conheceram. É que eles
dançavam o mesmo passo, pisavam com a mesma suavidade. E de tanto dois para lá e
dois para cá, acabaram se esbarrando. É que ninguém sabe direito onde fica o lá
e o cá, então, quando o lá e o cá se cruzam é porque duas vidas também se
cruzam. O encontro entre o lá e o cá é a intimidade explícita dos pés, é o amor
livre de censuras e julgamentos, não porque eles se amam por baixo dos panos
das calças, é porque eles abandonaram a privatização amorosa, e tem amor para
todos ali embaixo, entre os quatro pés, entre os vinte dedos. E na unicidade do
encontro e na multiplicidade do amor duas histórias se esbarram. A do menino
arteiro e a da menina gente grande.
Não
que a menina fosse grande, é que a menina não sabia brincar. E por isso se
achava grande. Dizem que as pessoas grandes desaprendem as brincadeiras de
infância, como correr com o vento. E a pequinesa humana é logo substituída pela
centralidade umbilical dos homens. Homens e mulheres se tornam tão grandes que
se bastam em si mesmos.
Mas
o menino adorava correr atrás do vento.
E ele, ao pé do
ouvido da menina - os pés dos ouvidos também se amam – disse:
- Que tal subtrairmos
o dois pra lá pelo dois pra cá e zerarmos qualquer espécie de distância
possível?
A
menina grande levantou a saia, descalçou os pés, e sem que ninguém visse,
começou a correr. A menina tirou o menino para brincar.
E
os dois corriam de cá para cá, o menino corria atrás da menina, e como ela era
grande, não era qualquer brisa, era um tufão. As duas histórias que se cruzavam
brincavam juntas de ser vento. E para isso só bastava sair do salto e fechar os
olhos. Corriam entre, sobre, sob, pós e ante o vento. Quem via de longe jurava
de pés juntos que menino e menina se transformaram em vento, que foram comidos
pelo tufão.
Foi
um parênteses de vida. Algo indizível, indemonstrável, irreplicável. Que só
podia ser visto, a olho nu, de dentro do parêntese. Mas algumas pessoas não
viam, é que essas vestem os olhos com apetrechos que repelem a trivialidade. Um
parêntese cheio de cruzamentos entre o cá e o lá.
Mas
foi só um tufão que arrepiou os cabelos e passou. Passou que passou, e o parêntese
de vida se fechou. O menino enlouqueceu. Porque
o maior nível de consciência é a loucura, e vice-versa. Como caminhar depois da corrida? Pensava ele. A mudança repetida
entre o lá e o cá martelava sua cabeça, ele precisava do cruzamento, de estar
dentro do parêntese.
Dois para lá, dois
para cá Dois para lá,
dois para cá
Dois para lá, dois para cá Dois para lá, dois para
cá Dois para lá, dois para cá
Dois para lá, dois
para cá Dois para lá, dois para cá Dois para lá, dois para
cá
Um pra cá prá cá pra cá pra cá
Cá cá cá cá cá cá
cáááááááááááááááááááááááááááá...
O
menino virou cientista, trabalhava com a química e com a física, conduzia
reações e elementos. Queria reproduzir o tufão. Queria reproduzir a brincadeira
de correr atrás do vento. Mas faltava a outra história entre tanta alquimia,
faltava o cruzamento entre o cá e o lá das duas histórias de vida. Faltava a
relação amorosa entre os pés, a conversa entre os pés do ouvido e a corrida descalçada
de criança. O problema é que o menino virou um menino grande.
E
o menino cientista, sozinho em seu laboratório, não conseguiu replicar o parêntese
de vida. É que toda vez que ele dava dois passos para cá o parênteses se ia
dois passos para lá. Como o bailar da utopia.
Mas bonita mesmo é
a história dos pés.
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