quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Joana e quem?


     A mulher estava no quarto quando o homem chegou. Não moveu nenhum dedo, nem sequer se embelezou. Deitada, em meio sono, lembrou-se do tempo que esperava o marido no portão, com a boca cheia de alguma coisa. Agora, nem do quarto saía. Na verdade, nem mais conhecia o homem que entrava pela porta da casa nova. Como era o seu olhar? Como sua barba crescia? Como sua pele cheirava? Como ele vivia? Algumas lembranças remotas não chegavam a responder. Perguntas que não mais cabiam fazer.
      O homem chegou e foi direto a cozinha. Nada disse, nada ouviu. Somente os sapatos arriscavam alguns dizeres pelo chão. Uns sussurros, abafados pela sola do sapato e pela força do tempo.
    O jantar esfriava sobre o fogão. Ela, ainda deitada, ouvia o barulho dos pratos, dos talheres, e do macarrão a crepitar na panela, como ele sempre fazia. Ela odiava o péssimo desempenho culinário do marido. Mas com o passar do tempo o ódio tornou-se indiferente e o barulho do macarrão a crepitar inaudível.
      Ele chegou do trabalho com tanta fome que já não se lembrava de que alguém dormia no quarto ao lado.
      Ela trabalhava durante à manhã e à tarde. Ele trabalhava no turno da tarde e da noite. Nos dias ímpares ele preparava o jantar e deixava sobre o fogão e nos dias pares era a vez dela de deixar o jantar esfriando nas panelas. Os dois organizaram suas rotinas de uma forma tão perfeita que não precisavam mais conversar para que a relação perdurasse. O sistema estava tão bem montado que só bastavam repetir as tarefas para a máquina não quebrar. O sistema estava tão bem fechado que não conseguiam sair dele.
      Quando eles casaram, havia amor. Como dos demais casais que casam. Mas com o passar do tempo o amor acabou, como dos demais casais que se mantém casados. O problema é que na relação de Joana e Carlos nada ficou. Às vezes fica uma dependência, um afeto, uma amizade, um respeito, um carinho, uma cumplicidade, ou alguns filhos. Entre os dois o amor acabou e nada restou. Assim, nada existia.
      Nos finais de semana Carlos gostava de descansar. Deitava-se em qualquer lugar, no chão da cozinha, na grama do quintal, no sofá da sala. Durante a semana ele não podia fazer as coisas que gostava por causa do trabalho e nos sábados e domingos descansava para poder trabalhar durante a semana. Com o passar do tempo já não sabia do que gostava, então fechava os olhos e os sentidos e descansava, que era uma das coisas que ainda sabia fazer. Nos finais de semana Joana gostava de limpar a casa. Arrumava todas as coisas que não usava em nenhum momento, e que só serviam para serem limpas. E assim varria o chão da sala, lavava todas as louças de porcelana que a geração de mulheres de sua família acumulou, lavava as roupas que não usava, mas que estavam sujas e trocava os lençóis da cama. Das coisas que gostava de fazer durante os dias de folga era de ouvir o som da máquina de levar, que soava como música e de observar as roupas bailarem lá dentro. O final de semana eram dois dias e demorava a passar para Joana, por isso ela demorava ao esfregar os vidros das janelas.
      Em diferentes momentos Joana chegou a varrer o marido para fora de casa. Ela não o via deitado no meio da sala. Ele não sabia deixar sua condição de sujeira. Teve um dia que Carlos acordou dentro da cesta de lixo. A esposa, certamente, deve ter o confundido com uma casca de banana. Teve um dia que Joana, ao esfregar com muita força as janelas, quebrou um vidro e machucou a mão, mesmo assim ela não parou de limpar o vidro que não existia e assim continuou a fazer durante todos o finais de semana restantes.
      Carlos, quando jovem, esforçava-se para guardar uma quantia de dinheiro em cada salário recebido. Ele fez uma poupança para gastar no futuro com a esposa, mas o futuro nunca chegou e ele não gastou nada do que muito economizou. Agora, velho e doente, Carlos já não sabia com o que gastar, mesmo não sabendo mais o que era futuro e com quem foi casado.
      Numa terça-feira, quando a casa estava bem velha, Carlos não foi trabalhar, foi sua primeira falta depois de tantos anos. O homem também não levantou para tomar café, nem para ir ao banheiro. Carlos morreu enquanto dormia ao lado da esposa, sobre a cama do casal. Carlos morreu, mas parecia descansar. Joana só achou uma coisa estranha, não encontrou a comida esfriando sobre o fogão.
     No sábado, ela levantou-se cedo, bem disposta para a limpeza semanal. Abriu toda a casa, um cheiro podre impregnava todos os cômodos. Joana varreu o chão da sala, tirou o pó da estante, lavou a louça da pia e, também, trocou o lençol da cama. Pegou o lençol sujo, que fedia como se tivesse um amor morto dentro e colocou-o na máquina de levar. Lavagem turbo e enxague extra. Ali onde estava, na área de serviço, escutava a sinfonia da máquina de levar e assistia à dança da roupa suja, dois pra lá, dois pra cá. O baile enchia Joana de prazer.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Caminho de casa

            Eu passei pela minha rua, inúmeras vezes. E outro caminho era inviável, intransponível, pois essa rua é intrínseca a mim, como a minha infância, como um ser que sou e desconheço. O trajeto se mostra calmo e sereno, assim como os meus passos. Passados os anos e lua permanece cheia, de paisagens constantes a minha rua.
            O caminho é argiloso, de um alaranjado que parece refletir o sol, assim como o mar de Monet que abarca a paleta de tons azuis do céu. A argila pede pés descalços, como se em cada passo fosse possível esculpir o tempo.
           A rua se espreguiça sem um propósito de final, não leva a outra parte, horizontaliza-se nela mesma.
            Eu passo mais devagar que o vento, como se retardasse o tempo. Na margem da rua, nada mais há além de uma velha casa, que mais parece um organismo vivo, que pulsa elementos para os cinco sentidos. Uma cerca de madeira, que não se faz de fronteira, circunda a casa e o seu jardim. Uma cerca de meio metro, de madeira velha, íntima da terra e dos pássaros.
           As flores do jardim são flores primárias que se desabrocham em pigmentos de outras naturezas, até formarem um ciclo cromático com aroma de verão.
            A casa, que nunca entrei, que de tão minha tenho medo de não saber sair, permanece um segredo pra mim, e daqui de fora ainda não posso ver o livro que repousa na cabeceira da cama.
           Mas o mistério ou o êxtase que move a minha eterna caminhada, de tantas idas e voltas que já não sei quantas vezes passei, por essa rua e por essa mesma casa que é vizinha de si mesma, essa casa que é minha, que é tanto história quanto corpo, é a mulher que me espera no portão, eis o mistério. Uma mulher que muda e não sei aonde vai. Se na ida é Luiza, na volta é Martina. Eu não sei quando se transforma, se vem de dentro ou vem de fora. Nunca sei até quando fica e se retorna.
            Essa mulher, que também é meu amor, que não sei se está de saída ou se trouxe consigo um ser de eterna estadia, com sua casa e sua rua e que um dia vai me convidar para entrar.