quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O pardal colorido

Gosto de ver o pássaro.
O pardal, tão comum, tão cinza, tão mais um.
Tão João ninguém, tão despercebido, tão rotina.
Tão só mais um zé pousado sobre o fio elétrico
O pássaro que nossos olhos já não veem.
Mais um pardal, entre tantos pardais, mas gosto de olhá-lo.
Aqui ele é tão singular, tão único.
Não necessariamente mais um pardal,
Mas é o pardal, aquele que consegue voar
Em terra de cegos quem tem um olho é rei
Aqui
Em terra de presos, quem sabe voar é rei
Por isso, enquanto entrego livros entre a portinhola enferrujada
O voo do pássaro me é tão bonito
mais vale um passarinho voando do que dois na gaiola
E vejo quem é rei voar
A liberdade dentro da prisão
O voo entre as grades.

Gosto da ingenuidade de seu bater de asas, que se diz livre.
Que se diz voar sobre um campo florido
Que se diz saber voar, mesmo dentro da prisão.
E tudo se confunde, liberdade, prisão
Prisão, liberdade, liberdade, prisão.
E eu que não sei voar?
Mais um preso?
Aqui e lá fora. Dentro, fora
Fora, dentro, dentro, fora
Tudo se confunde
E quando sair daqui, ainda não voarei
E a prisão eu carrego comigo nos pés, mesmo vendo os pássaros
que não representam mais a liberdade,
porque no céu azulado tudo se confunde
tudo passa a ser mais um.


Gosto de ver o pássaro
Enquanto a liberdade caminha ao lado das grades em passos lentos, não sei se para frente ou para trás, para dentro ou para fora, é tudo uma questão de asas.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O dia em que Bartolomeu apostou corrida com o rio.


Em todo treze de agosto era a mesma coisa. Toda a família de Bartolomeu se reunia no sítio da dona Cidinha. Era aniversário da Vó.
Quando criança o sítio era como a Disney Word para Bartolomeu. As galinhas, os cavalos, as vacas, os patos. O menino gostava de correr atrás das galinhas, elas corriam engraçado. Gostava de pisar na pata da vaca. Gostava de dar comidinha para o patinho. Mas depois de crescido descobriu que animal e personagem da Disney são coisas bem diferentes. E que animal não é tão legal.
Agora, com seus treze anos de vida, e muita coisa vivida, considera o sitio a coisa mais chata e banal do mundo, pior do que programa de culinária na TV.
Não tem nada para fazer. Video game. Internet. Asfalto. Shopping.
Semana passada, a contragosto de Bartolomeu, toda a família se reuniu novamente. Octogésimo segundo aniversário de dona Cidinha.
E com a porção de coisas que se podem inventar quando não se tem nada para fazer, Bartolomeu inventou uma brincadeira nova. Apostar corrida com o rio.
Subiu no morro do sol da Lucéia do seu Valmor, da melhor mandioca do distrito, e voltou feliz da vida. Cheio de verdades para contar.
- Vó! Vó! Eu ganhei do rio Vó! Apostei corrida com ele. Começamos em cima do morro, lá onde o sol quase encosta com a mão. Foi uma disputa acirrada, o rio corria ao meu lado. Quem deu a largada foi a árvore, ela disse e começamos a correr. Todos pararam para assistir nossa corrida, as pedras, as nuvens, as flores. No início eu estava atrás do rio, mas quando eu vi a árvore torcendo por mim, ela ia de um lado para o outro, dizendo: Vá Bartolomeu! Vá que o tempo também se vai! comecei a nadar no vento, o tempo também soprava a meu favor. As formigas tiraram meu chinelo e eu corri que corri, igual um pássaro no ar. Aí o rio ficou para trás e ganhei dele. A árvore atirou um galho no céu na hora da chegada. O cachorro do mato meu deu os parabéns pela vitória. E foi assim Vó, que ganhei do rio.
E a Vó disse: Mas essa corrida não foi justa, menino. O rio já estava cansado ué. Ele correu durante a noite toda. O rio começa a correr lá onde nasce o mundo, quando chega aqui já não se aguenta mais das pernas.
E a mãe disse: Vai lavar esse pé menino.
Bartolomeu lavou o pé, pegou três pedaços de bolo de milho, chamou o cachorro do mato e foi lá onde nasce o mundo.
Ele não poderia perder para o rio.

domingo, 12 de agosto de 2012

O menino que conheceu a menina gente grande.


Primeiro foram os pés que se conheceram. É que eles dançavam o mesmo passo, pisavam com a mesma suavidade. E de tanto dois para lá e dois para cá, acabaram se esbarrando. É que ninguém sabe direito onde fica o lá e o cá, então, quando o lá e o cá se cruzam é porque duas vidas também se cruzam. O encontro entre o lá e o cá é a intimidade explícita dos pés, é o amor livre de censuras e julgamentos, não porque eles se amam por baixo dos panos das calças, é porque eles abandonaram a privatização amorosa, e tem amor para todos ali embaixo, entre os quatro pés, entre os vinte dedos. E na unicidade do encontro e na multiplicidade do amor duas histórias se esbarram. A do menino arteiro e a da menina gente grande.
Não que a menina fosse grande, é que a menina não sabia brincar. E por isso se achava grande. Dizem que as pessoas grandes desaprendem as brincadeiras de infância, como correr com o vento. E a pequinesa humana é logo substituída pela centralidade umbilical dos homens. Homens e mulheres se tornam tão grandes que se bastam em si mesmos.
Mas o menino adorava correr atrás do vento.

           E ele, ao pé do ouvido da menina - os pés dos ouvidos também se amam – disse:

- Que tal subtrairmos o dois pra lá pelo dois pra cá e zerarmos qualquer espécie de distância possível?

A menina grande levantou a saia, descalçou os pés, e sem que ninguém visse, começou a correr. A menina tirou o menino para brincar.
E os dois corriam de cá para cá, o menino corria atrás da menina, e como ela era grande, não era qualquer brisa, era um tufão. As duas histórias que se cruzavam brincavam juntas de ser vento. E para isso só bastava sair do salto e fechar os olhos. Corriam entre, sobre, sob, pós e ante o vento. Quem via de longe jurava de pés juntos que menino e menina se transformaram em vento, que foram comidos pelo tufão.
Foi um parênteses de vida. Algo indizível, indemonstrável, irreplicável. Que só podia ser visto, a olho nu, de dentro do parêntese. Mas algumas pessoas não viam, é que essas vestem os olhos com apetrechos que repelem a trivialidade. Um parêntese cheio de cruzamentos entre o cá e o lá.
Mas foi só um tufão que arrepiou os cabelos e passou. Passou que passou, e o parêntese de vida se fechou. O menino enlouqueceu. Porque o maior nível de consciência é a loucura, e vice-versa. Como caminhar depois da corrida? Pensava ele. A mudança repetida entre o lá e o cá martelava sua cabeça, ele precisava do cruzamento, de estar dentro do parêntese.

Dois para lá, dois para cá                 Dois para lá, dois para cá

        Dois para lá, dois para cá                     Dois para lá, dois para cá  Dois para lá, dois para cá
Dois para lá, dois para cá  Dois para lá, dois para cá                       Dois para lá, dois para cá

Um pra cá   prá cá pra cá pra cá

Cá cá cá cá cá cá cáááááááááááááááááááááááááááá...

O menino virou cientista, trabalhava com a química e com a física, conduzia reações e elementos. Queria reproduzir o tufão. Queria reproduzir a brincadeira de correr atrás do vento. Mas faltava a outra história entre tanta alquimia, faltava o cruzamento entre o cá e o lá das duas histórias de vida. Faltava a relação amorosa entre os pés, a conversa entre os pés do ouvido e a corrida descalçada de criança. O problema é que o menino virou um menino grande.
E o menino cientista, sozinho em seu laboratório, não conseguiu replicar o parêntese de vida. É que toda vez que ele dava dois passos para cá o parênteses se ia dois passos para lá. Como o bailar da utopia.  


Mas bonita mesmo é a história dos pés.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O menino que rasgava saias.

Era um menino arteiro e sorridente, mas a mãe nunca soube dizer o que veio primeiro, a arte ou o sorriso. Todos queriam saber se ele sorria porque era arteiro, ou era arteiro porque vivia sorrindo. Essa necessidade de ordenar os fatos. Alinhar o tempo. “Cronologizar” os sentidos. Mas o menino não. Ele não gostava de fórmulas, de ordens, de regras, de filas, de respostas universais e de verdades. O menino gostava da desordem. E o sorriso era sua resposta para a cientificidade do mundo.
Na escola, nas aulas de matemática, o menino contava os números assim:
1, 2, 4, 15, 20, 28, 5, 8, 1, 44, 12...
Ele não gostava de reproduzir.
Nas aulas de português também era assim, e a professora, coitada, insistia em dizer:
- Dislexia.
Só porque o menino gostava de trocar os sentidos das coisas, gostava de pintar de azul as coisas. Escrevia um mundo seu, inventava suas verdades mutáveis, e isso era a liberdade para ele. Gostava de inventar textos. Mas a língua pronta e acabada não gostava de beijá-lo, não permitia ousadias. E as professoras o presenteavam com um zero. Mas o menino gostava do zero, tão misterioso, tão nem aí para o mundo.
Até no amor era assim, misturava tudo. Matrimônio, amor, amigos, paixão, namoro, tesão, colegas, afeto, amantes, paqueras, e até mesmo o desconhecido. Tudo era passível de ser amado, em qualquer lugar, em qualquer posição. A ordem não importava.
Mas o menino queria ver todo mundo junto. Todos seus amores sob o mesmo céu. Começou a rasgar despedidas, a cortar o tecido que tecia a solidão. Não por egoísmo, apego ou ânsia de domínio alheio, o domínio acompanha a ordem, e o menino gostava da desordem. Gostava de estar no canto das borboletas, no canto das ondas, no canto dos araçás. Gostava de escutar o canto do quarto, o canto da estrada, o canto da lagoa.
E assim o menino começou a rasgar saídas, saidinhas e saias. Não por assédio, mas o menino cansou de ver pernas o deixarem só. E rasgou a saída na altura do joelho.

Para que você não saia.
Para que ele não saia.
Para que ela não saia.
Para que a saída não saia.

E a dança libertou as pernas, e a saia rasgada libertou a dança. E cada um bailou conforme o seu eu conduzia, era o encontro entre o Eu e o Outro, que era a música. E a dança desordenou a métrica. Cada um foi para um lado, para um canto, para um morro, para um mar, para um céu, para um vento. E ninguém mais se viu, ninguém mais se falou, ninguém mais se amou. A saia rasgada libertou a liberdade..

E agora sim o menino podia dormir sem medo, pois só a liberdade não deixa ninguém só à noite.