domingo, 28 de julho de 2013

Bossa Nova Uruguaia.



Um canto de nostalgia

no sobrado da rua.
Uma sobra que é o todo
mais do que necessária
para as lembranças dos três distintos cavalheiros.
Sim, distintos de diferentes palavras.
Vinícius de Moraes e Toquinho também
estavam ali,
Gal Costa um pouco mais para cima.
E estavam para além dos discos na parede, sorriam.
Estavam no passado-presente-passado, dos três cavalheiros.

Arrisquei um “Me gusta la música brasileña”.

Os três me olharam com um azul de outros mares

De outras águas, talvez águas de março.

Lembrança, história e memoria dividindo o mesmo instante-já.

Por mais paradoxal que seja.

- ow, brasileño?

- Claro, claro!

Livro aberto, poeira solta no ar,

Como se um tempo outro viajasse sob nossos pés

como se não estivéssemos mais na rua,

mas no sobrado da memória. Sobra de vida.

Cavalheiro 1, com o violão na mão,

Tirou o Toquinho que existia dentro de si e começou: 

Um samba de uma nota só.

Não fiquei por menos, arrisquei uma
Garota de Ipanema no pífano.
Nisso o cavalheiro 2 disse:
- Me encanta Bossa Nova, para mim o melhor é Tom Jobim
Músico completo, maestro, propôs algo distinto, reuniu muita gente boa.
Apesar das letras do Chico Buarque serem pura poesia.
Cavalheiro 1 “Mas Jobim é uma coisa e Chico é outra coisa. Nada como Jobim e João Gilberto musicalmente. Chico é o maior poeta”.
Cavalheiro 2 “E Elis Regina? Nossa! Era artista, interpretava corpo e alma.
Cavalheiro 1 “E o que falar dos Baianos? Caetano, Gil
Maria Bethania, a feia mais linda do Brasil, (todos riram, pobre Bethania).
Clara Nunes, claro.
Para mostrar que entendia do assunto falei um pouco do tropicalismo,
O uso da guitarra elétrica, a ideia da geleia.
O cavalheiro 3, que ainda nada havia dito, me perguntou:.
-          Sabia que a revista Veja vai mudar de nome para guaraná antartica?
-          Não, por quê?
-          Porque cansou de (ser)veja.
Sorri, claro, claro, boa. (hã?)
Cavalheiro 2 reiniciou a conversa depois da fantástica piada.
mas no Uruguai também temos ótimos músicos e Bossa Nova também.
Eduardo Mateo, produziu na mesma época de João Gilberto,
Conheces Eduardo Mateo?”
-          No, no.
E Ruben Rada? Jaime Roos, Numa Moraes?
-          Não, no Uruguai só conheço Jorge Drexler.
Noooooooooo, tens que ouvir outras coisas”
Pensei comigo (não fala do Drexler assim não cara, gosto bastante)
E os cavalheiros começaram a falar de muitos outros cantores
Era como um discussão de futebol.
Daniel Vighieti é melhor
Não, Totem
Candombe de um lado
Tango de outro
Bossa nova
Cumbia
José Carbajal
Kinto
Mas Laura Canoura é mais completa
Os cavalheiros regressaram nos anos 60, 70.
Eu tinha que agir, resgatá-los do poço do tempo.
E conhecem Tom Zé? Paulinho da Viola?”
Claro, Paulinho da Viola! Nisso o cavalheiro 1 iniciou a cantoria:
Desilusão, desilusão, danço eu dança você na dança da solidão”
Eu quase não acreditava no que estava escutando, Paulinho da Viola ali, naquele sotaque, naquela rua, naquele samba.
E o cavalheiro 1 continuou “Gosto também  do Martinho da Vila, fui ao show dele, muito simpático, além de Zeca Pagodinho, muita cerveja, e riu,
mas Tom Zé não conhecemos.
Como não, é muito bom, do tempo de Caetano e Gil, baiano também.
Mais experimental, bem louco. E Mart´nália? Filha do Martinho?”
-      -   Não, não.
-      -   Muito boa também.
Depois pegaram meu caderno de coisas desnecessárias e
listaram a seleção da música uruguaia, os técnicos escalaram seus melhores.
Nisso as três mexicanas do hostel chegaram
-        -  Ailton, dónde estabas?
Eu estava longe daquela rua, para depois da calçada,
Visitando os anos de glória daqueles distintos cavalheiros
e da música brasileira e uruguaia.
Saí com uma contemplação e com o desejo
de viver por muitos anos
para um dia também ser um distinto cavalheiro.
Os três ficaram ali no sobrado
perdidos no tempo.
Eu segui passeio com as mexicanas
porque um reggaetón também me pareceu muito interessante.

Segue a seleção dos distintos cavalheiros, o que entendi das letras deles.
Kinto
Eduardo Mateo
Ruben Rada
Jaime Roos
José Carbajal
Alfredo Zitarroza
Numa Moraes
Psigho-Rumbo
Laura Canoura
Vera Sienra
Totem
Hugo Fatoruso
Los Olimareños
Daniel Vighieti
Tabaré Etcheverri


Incluo Alejandro Balbis, sugestão de Klara, uma artista plástica distinta e lindíssima de Colonia del Sacramento.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Diário de uma viagem inexistente.

Cores descompassadas que se cruzam
um nem rosa        um nem preto
um nem forma
então não chega a ser                      um
é algo sendo
esse é o sopro.
Vílaró sopra
lá fora também
tempestade de sopro
de cores e poesia
o sol não se mostra na janela
nem no mar
nem no céu
noite virá sem seu pôr
o poema será declamado sem sua presença
hoje é sua folga
mas encontro-o
na bandeira
nas cadeiras
nas mandalas
nas telas, nas cerâmicas
de todos os signos
A casa Pueblo veste sol
ele está dentro de sua casa
preferiu o aconchego do que
a tempestade que sopra lá fora
que deixa o mar e as árvores loucas
aqui dentro, junto ao sol, sinto o quente vapor do café
isso me faz achar o mundo engraçado.

Em Casa Pueblo.



O barulho dos pássaros me encantam
não seus cantos, mas seus barulhos.
Parecem todos bêbados de vinho
a gritarem ao redor da mesa
depois a cagarem sobre nossas cabeças

Em Parque Rodó



Não quero construir uma biblioteca
de livros lidos dentro de minha cabeça,
pois não quero separar a literatura
de meus gestos e traços
                                   presentes.
O que leio está sempre além-de-mim
que também sou.

Em Playa Pocitos.



Uma boa recordação é o beijo
mas de onde vem o beijo?
Tenho um dentro de mim,
que nunca soube que tinha.
Em minha mala trouxe roupas e livros
mas não beijos.
Trocamos então,
este objeto nada
sem peso e forma
que não ocupa lugares
e assim criamos um ponto turístico visitado.

Em Café don filomeno.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Das (des)verdades.

      Zinho era um menino feliz, até começar a conviver com pessoas inteligentes, conscientes, críticas e estudadas. Deixou sua alegria de lado, porque felicidade é ilusão e o sorriso evidencia o conformismo e a aceitação de um ser manipulado. Isso Zinho não queria ser, fechou a cara e a boca, nunca mais sorriu. Entristeceu o olhar e livrou-se desse privilégio que é ser feliz.
     Apagou o amor também, pois amor é alimentação das entranhas do ego, é o mais puro egoísmo. Idealização e exaltação do desejo pessoal lançado como teia de aranha na face do outro. Egoísta ele também não queria ser, desamou.
    Para deixar seu egoísmo Zinho fez mais, recusou qualquer possibilidade de ter filhos, seria a duplicação do ego. Ego multiplicado num mundo doentio, falariam. Deixou de comer também, nada mais egoísta do que comer. Alimentar-se internamente e nutrir-se sozinho. Saborear qualquer prato de comida seria negar que tantas pessoas passam fome. Comer é um horror contra o outro e uma ação individualista.
      Com o passar do tempo, Zinho, parou de caminhar, pois o pisar é uma ação egoísta de sustentar o próprio corpo, de projetar-se a outro lugar, é a pura exposição e exibição mesquinha de sua imagem física. Caminhar é passar na frente e deixar o outro para trás. Imobilizou-se.
Zinho era livre, pois matou seu ego. De tanto não ser, não sorrir, não amar, não comer, não andar, Zinho sumiu. Virou poeira.
     As pessoas inteligentes se olharem e desprezaram a auto anulação de Zinho. Egoísta, falaram. Entrou no próprio umbigo. Tragaram o cigarro e voltaram e viver o instante-já, que de tão imóvel estava repleto de velhos musgos julgadores.

Leminskiando

O coração corou
e decorou-se de vermelho.
Ela vestia azul anil
e sorriu
porque não precisava combinar.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Clariciando

O eco da palavra nunca é repetido
A Eco presa na caverna, está a cantar castigos
histórias inéditas a cada final de palavra
a procura de seu Narciso
que se afoga em outras águas.
Águas, assim como palavras, nunca são as mesmas
o momento-já também não é o mesmo momento agora
água viva
palavra viva
eco
palavra viva
palavra viva
é o instante antes da morte.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Ser contrastes

Um contraste é um encontro
assim como a interação é um desentender.
O fotógrafo trabalha nessa tela linha tênue
entre o aparecer e o não aparecer
entre o limitar e o libertar
o acender e o apagar
e tudo se mostra no contraste
e só ali existe
no exato momento de lhe dar com/contra/ao outro
seres... imagens... sons...
palavras deslinhadas
prédios desavenidados
fotos desfocadas
poesias despalavreadas
O contraste entre o vivido e o não vivido
é o encontro do sonho
                                da imaginação
A melhor imagem é aquela que só queremos ver
a melhor palavra é o silêncio,
e o melhor silêncio vem da palavra,
Contrastes e mais encontros
ou encontros e mais contrastes?
o contraste arquitetônico desenha o céu
na cidade
os prédios determinam o limite seu
são os esquadros do céu
                                               [a fronteira do azul
                                               [a fronteira do sentido
o poeta trabalha entre o significar
e o não significar
mas se a imagem nada diz
quiçá a palavra
e o poeta diz porque não quer dizer
e só diz porque sabe não dizer todo o resto
saber não dizer é despalavrear a palavra
é falar silêncios
é andar no céu
é arquitetar um coelho nas nuvens.
O contraste da palavra é o encontro de babel
é subir no terraço e furar a fronteira entre o céu e o prédio
fotografar o contraste do não visto
é fazer vida
é ser o próprio contraste.
e ser contraste é mais do que ser.

terça-feira, 2 de julho de 2013

O homem que sofria de página não virada.

        Ele dormia só. Só dormia e não acordava. Tobias desconhecia as datas, os dias e os anos. Os dias tendiam para serem os mesmos. E a concepção de dia dialogava com memória. A memória também era a mesma. Sim, o rio sempre corre, as águas sempre são outras, a recordação e a memória são sempre distintas porque o presente é sempre distinto. Mas Tobias tinha uma doença literária, a doença da página 138. Indubitavelmente, os textos eram os mesmos, assim o dia e a memória eram os mesmo também. Mesmo travesseiro, mesmo espelho, mesmo café da manhã. Mesmo almoço requentado de ontem. O ontem era o mesmo. Tobias não sabia se o ontem era o mesmo porque o hoje era o mesmo, ou o contrário. Acontece que a barba cresceu e as rugas racharam a face entristecida de Tobias. As orelhas cresceram, os olhos umedeceram, no entanto, o livro sobre a cabeceira e os sonhos dentro do sono, permaneciam repetidos, centoetrintaeoutamente iguais.
        Todas as noites, sempre noites de lua minguante, Tobias pegava seu livro nas mãos e chorava, o marcador – materialização do pensamento – guardava a página 138. Recomeçava a leitura, lia outros capítulos, idealizava lugares e personagens, terminava o livro, dormia. No dia seguinte o marcador voltava para a pagina 138, era assim todas as noites e todas as manhãs, o pobre sofria de página não virada. Há 20 anos que Tobias lia a mesma página, capítulo mal resolvido de sua juventude. Último dia de carnaval, último gole de cerveja, incompreensões, impulsividade, copo quebrado, amor despedaçado. No lugar de olhos, viu-se nuca. Costas dadas, caminhos opostos. O livro deveria mudar de cor, mas permaneceu na penumbra do não vivido. Acontece que o jovem não aprendera a escrever sozinho, sem perceber, palavra por palavra, frase por frase, página por página, Tobias, como quem escreve sem lápis, desescrevia-se na vida. Já não saía mais, já não carnavalizava-se. Trancou-se no quarto, na memória 138. Virou um homem imaginário, de uma vida imaginária.
       Cura diagnosticada não existia, nem para o livro, nem para a cabeça de Tobias. No início da doença o pobre homem chamou os amigos, para verificarem o defeito da página. O livro fugia, sumia da cabeceira, sumia da biblioteca, sumia das vistas de todos, menos da de Tobias. Ninguém tocou o livro imaginário. Nos olhos dos outros não havia livro nenhum, página nenhuma, recordação nenhuma. Os amigos concluíram que o problema era da cabeça de Tobias. Assim, quem sumiu foram os amigos. O doente ficou sozinho, ele e o livro.
        Teve um dia em que Tobias quis curar-se de uma vez por todas. Determinado, abriu a janela de seu apartamento, encarou a luz solar, algo que não fazia há muito tempo, e atirou o livro para o céu, com toda sua força. O livro voou. Por um breve momento o homem sentiu-se livre, nas nuvens. Mas logo se arrependeu. O problema é que a cabeça de Tobias voou junto com o livro, depois de segundos lá estava ela, no calor do asfalto, entre o trânsito dos carros, a rolar de uma lado para o outro. Perdida. Solitária. Invisível. Desesperado, correu no meio da multidão, juntou sua cabeça e retornou ao apartamento. Sentou-se na cama e sentiu-se aliviado ao ver o livro na cabeceira, aberto na página 138.
      De tanto procurar decidiu não achar mais. Sentou-se na cama do conformismo e descansou a ambição e a expectativa. Aceitou seu carma. Se Tobias tivesse amigos, nem perceberiam que o homem sofria de página não virada. A página 138 era intocável. Soberana. Não havia livros que a substituísse, quanto mais Tobias lia gêneros distintos, mais ela lhe dizia. Era página 138 antes do café da manhã, depois do almoço, durante o banho, em meio ao sono, de repente de madrugada. Ao lado da cama, em cima da pia, sobre o carpete da sala. Leu tanto que comeu todas as palavras da página. Cada olhar. Cada aroma. Todo o cenário. Todo o dito e o não dito. Todo o por-vir e toda a história. Todo som abafado. Toda ação adiada. Toda respiração alterada. Tobias aprendeu a viver com a página 138 dentro do coração, no seu devido lugar.
        Numa manhã, igual a todas as outras até então vividas, em meio a um café extra forte, sentado na cadeira da velha e fria cozinha azul bebê, o velho homem escutou um grunhido que lhe chamava da rua. Tentou tapar os ouvidos, proteger-se no seu cadeado imaginário, mas o som lhe puxava com as duas mãos e dissipou seu medo imaginário. Levantou-se, e com os ouvidos colados na porta, escutou o que lhe diziam: Tobias Tobias Tobias... Sim, a rua chamava seu nome, um som sedutor e alegre. As mãos, sem que Tobias visse, abriram a porta, e os pés, como num repentino salto, pisaram o corredor do condomínio. O som era mais forte, eram mãos grandes que empurravam Tobias. Quanto mais caminhava, mais audível o som ficava.
      Na sala de estar do apartamento 139, a velha Lurdes, vizinha do homem da página 138, e todos seus familiares, gritavam euforicamente por Tobias, o nome do mais novo integrante da família, bisneto de Lurdes, que acabara de chegar do hospital e entrar na vida. Comemoravam o nascimento.
        No corredor, o velho Tobias também nascia.
        Pode virar a página.