sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

No caminho do rio.

O rio amanhecia antes do grito do galo iniciar a manhã. E junto com o rio, João também era outro dia. Antes da mulher e dos filhos acordarem João saía de casa, sempre com um adeus não respondido. Na realidade, o homem de cinquenta anos tinha mais intimidades com o rio do que com a família, era mais pescador do que pai.
O pescador só andava por dois momentos durante o dia, no caminho de ida até rio e no caminho de regresso do rio, no resto o homem flutuava sobre as águas, suas pernas eram a canoa e seus passos os remos. Esse era o seu dia, que também era sua vida. Cotidianamente carregava nas costas o mesmo peso da tarrafa e o mesmo destino, a herança de seus ancestrais, assim como a lua carrega o peso da noite.
Mas tem um dia em que até o sol esquece a sua sina de brilhar, um dia em que os nomes trocam de signo, as flores de cheiro, as cores de foco, os peixes de oceano e os homens de seres. Nesse dia de verdades duvidosas o pescador já estava sobre a canoa quando o improvável aconteceu. A canoa era levada pelo rio e João era carregado pela canoa. Seus olhos permaneciam atentos, esperando qualquer movimento suspeito nas águas para lançar sua tarrafa. Assim embalava-se o ritmo do baile, rio, canoa, pescador, olhos, tarrafa, peixe. Uma dança bem ensaiada. Porém, nesse estranho dia, o rio errou o passo, parece que travou os pés, tropeçou nas próprias pernas. A canoa parou, João parou, os olhos pararam e até os peixes pararam.
Nem gregos, nem troianos acreditaram, nem filósofos, nem boêmios aceitariam, mas esta era a verdade: O rio parou. O rio não passava mais, não corria, nem caminhava, estava parado, cessou seu caminho, estava fixo como uma pedra dormindo. Nesse momento um menino poderia dizer que entrou duas vezes no mesmo rio.
O pescador não podia compreender, o que fazer sobre um rio parado? Como lançar a tarrafa numa água que não corria? Não sabia para onde seguir, era como se tivesse perdido o aprendizado das pernas e a sabedoria da própria identidade. Um pescador sobre um rio parado não sabe andar.
Nesse momento de medo, João olhou para cima e compreendeu a mensagem divina, algum deus estava a dar a humanidade um caminho novo a ser trilhado.
O céu estava azul e suas nuvens pareciam a mata ciliar de um imenso rio. O sol, que há anos vinha transformando a pele de João em escama de lagarto, iluminava todo aquele mar celestial. Pois se o sertão não virou mar, agora, sobre os olhos de João, o céu virou mar. Os sentidos trocaram fronteiras e as palavras já não sabiam de que língua pertenciam. A cara virou coroa e a coroa virou plebeu. Babel era o mundo, mas tudo estava tranquilo, sereno, como o paraíso nunca esteve antes.
Era um brilho que quase fez cegar o pobre pescador, de uma luz que confundiu suas vistas e sua remota lucidez. O que era aquilo que brilhava no céu? Um peixe batia suas pequenas nadadeiras como se fosse uma andorinha. Suas escamas refletiam como um prisma, era luz para todos os lados. O peixe parecia um arco-íris a dançar no céu.
Primeiro percebeu um peixe, depois os olhos aprenderam a ver. Não era apenas um, era um cardume de arco-íris que nadavam no céu.
João não se intimidou, pescador que era, rapidamente armou a tarrafa. A tarrafa era como a extensão de seu corpo, obedecia seus extintos como os seus dedos obedeciam. Os olhos eram olhos de águia, fixos e atentos, pela primeira vez seu algo não estava submerso, escondido entre águas, agora era o ar. João lançou sua tarrafa para o céu e, pela primeira vez, pescou peixes voadores, encharcados de ar.
O gongá estava cheio e iluminado, de um peixe que saciava mais que a fome, que alimentava mais que o corpo.
O rio continuava parado, nenhum passo para frente, nenhum passo para trás. Não porque não soubesse aonde ir, não que estivesse confuso, desorientado ou cansado. É que as direções estavam trocadas.
O rio, pela primeira vez, disse: Vai pescador, estás livre! Escolha seu caminho, siga o que tiveres para seguir, és mais livre e leve que a água.
João, iluminado, enfim, foi ser rio de si.

O homem lagarto.


Era um dia de sol, de saturar as cores e os corações em uma magia colorida, que é o verão. No entanto, nesse cenário fabular, o homem lagarto vivia embaixo da ponte, na  sombra e sobra da vida, à beira do mangue. Não que ele fosse meio animal, com pele escamosa e áspera ou com calda longínqua, como se fosse uma personagem da mitologia grega. O homem lagarto, talvez, fosse o homem mais desumanamente humano da cidade.

Sob a sombra ninguém o via. Era um lagarto esquecido com sua lata de coca-cola na mão. Os outros viviam com outras próteses: o homem colorido com sua bicicleta e seu capacete, a mulher segurando firmemente o volante de seu carro, o menino de óculos e celular. O homem lagarto só levava sua lata vazia, onde ele cheirava o resto do que não havia bebido, inalava o resto do resto do resto da sociedade que construía shopping, casas e condomínios sobre o mangue que o homem lagarto se banhava e que justificava sua vida, sua palavra e seu nome, que ele mesmo apelidou, mas que ninguém sabe, porque o homem lagarto vive embaixo da ponte, na sombra e sobra da vida.