quarta-feira, 14 de maio de 2014

el camino. el cariño.

Abel era um homem melancólico, de olhos melancólicos, barba melancólica e trajes pretos melancólicos. O andar, também melancólico, imitava a estrutura arcada de um guarda-chuva, inclinado para si. Beatriz dizia que era culpa da poesia, o pai passava os dias na biblioteca de casa, mergulhado nos livros empoeirados. Com os anos já não era possível ficar em posição ereta.
Na triste manhã de 14 de junho de 1986, na saída do velório de sua esposa, esta foi a visão que impressionou Julio Borges: os olhos lacrimejosos de Abel, que guardavam uma solidão sólida e soberana, como a infinitude dos oceanos. Sobre a cabeça do velho enigmático, o guarda-chuva imitava seu corpo, como se um fizesse companhia para o outro. No portão do cemitério os dois se abraçaram, sogro e genro. Com a troca de calor complacente ambos compreenderam a própria dor, por meio da dor do outro. Deram-se as costas e cada um, seguindo seu caminho, carregou consigo a fadiga da perda e o vazio da solidão. Em suas cabeças, filmes foram projetado em tela de cinema: Beatriz acordando, Beatriz comendo, sua voz com gosto de primavera e seu cabelo com cheiro de jasmim. Um a recordar da filha, outro a relembrar da esposa. Na porta de casa Borges desejou que o abraço de despedida durasse mais tempo.
Em 1987, uma semana antes do aniversário de um ano da morte de Beatriz, Julio B. voltou a recordar de sua ex-esposa como se ela estivesse ido ao mercado e logo voltaria com os legumes frescos. Ou como se estivesse na casa do pai, ouvindo o velho ler poesia, sentada em seu colo, como sempre fazia. Lembrava até mesmo de Luis Jorge, o filho que um dia sonharam ter. No devaneio da madrugada e pelo implacável passado que entrava pela fresta da janela, J. Borges decidiu visitar o sogro e a antiga casa em que Beatriz morou quando criança. Só o velho Abel saberia brindar com devida dor a taça de vinho que sua amada merecia para comemorar essa data.
Porém, a sensação de rever o sogro preenchia o sono de Julio Borges de pura cólera, com repentinos calafrios que faziam seu corpo suar. Por dois dias não foi ao trabalho, a febre não o deixou sair da cama.
Borges e Abel nunca estabeleceram uma relação amistosa ou diplomática. Apesar das tentativas frustradas de Beatriz para aproximar pai e marido, os dois mantinham o silêncio, como se nada tivessem para falar, para contribuir, para trocar. Um não agia sobre o outro, eram forças opostas, universos paralelos.
Abel, apesar de cultivar o costume do silêncio, num certo dia, confessou a filha que a presença de J. Borges o incomodava profundamente, era como se o genro o encarasse a todo momento, como se roubasse seu espaço no mundo e seu ar para respirar.
Apesar das diferenças os dois compartilhavam duas coisas: o amor por Beatriz e a solidão crônica.
Mas o encontro aconteceu, Borges ligou para Abel e tremeu ao escutar a voz rude do sogro pelo telefone.
Como combinado e exatamente no horário programado, J. Borges, às 20h, tocou a campainha da imensa casa da rua Aleph. Na mão, segurava O retrato de Dorian Gray.
Abel abriu a porta com um sorriso cortês, mas forçado. A musculatura de sua face já não sabia articular os movimentos precisos para um sorriso. Ao olhar o jovem em sua frente, percebeu que o pobre homem envelheceu uma década em apenas um ano.

Este livro é para você, sei que gostas de ler.
Sim, muito! Uhm, Oscar Wilde, interessante
Um clássico.
Sim, você já leu?
Não.
Então fique, tenho todos dele. Wilde teve uma vida extravagante e muitos amantes.

A porta fechou-se e os dois entraram. A casa parecia estar desabitada, com uma aparência fantasmagórica e abandonada. O próprio Abel parecia estar desabitado. O velho seguiu na frente, com andar pesado e lento, sem pronunciar uma única palavra. Vestia preto e sua barba ruiva iluminava a escuridão da casa, como a lamparina na parede. Seguiram até a biblioteca, por minutos, que para Borges, pareceram durar a eternidade, já não sabia se teria sido uma boa ideia o encontro.
Café era a única bebida que tinha na casa. Tomar café era como beber o véu negro da morte e saborear a mentira da eternidade. Na biblioteca, cada um com sua xícara, os dois sentaram-se em mesas diferentes e desenrolaram confissões sobre Beatriz, esvaziaram-se de toda palavra acumulada durante o ano. Falavam como quem fala para si mesmo, num processo terapêutico que perdurou duas horas.

Sabe, todos esses livros que aqui estão, todas essas estórias e devaneios. Falam de tudo muito bem, amor, natureza, ódio, doença. Só da morte que não, tudo não passa de suposição imagética, delírio, por isso, a morte, é a única experiência verdadeira, é o maior êxtase da literatura.

Após a quinta xícara de café, Borges decidiu ir embora, eram dez horas da noite, mas não tinha noção do horário. O tempo, ali, não seguia uma linearidade, era como uma espiral, independente da cronologia. Com Oscar Wilde embaixo do braço, com um aroma de café na boca e com um alívio no coração, Julio B, voltou para seu apartamento. Na cama, não soube saber se não conseguiu dormir devido as xícaras de café ou devido a luz da barba ruiva que ainda iluminava seus olhos. Ainda na biblioteca, Abel dormiu com Oscar Wilde.
Tanto em 1948 quanto em 1949, as visitas anuais seguiram. No dia 14 de junho as portas da mansão da rua Aleph escancarava-se para o único visitante que ali entrava. Motivadas pela morte e pelo café, as conversas, sempre tematizando Beatriz, se davam com tamanha intimidade e naturalidade que os dois pareciam estabelecer uma relação respeitosa de pai e filho. Nessas visitas já não sentavam em mesas diferentes e já conseguiam se olhar nos olhos. Abel não sabia explicar ou entender o porque da expectativa excitante que o dominava em todo início de junho.
Em 1950 Borges tocou a campainha mais cedo, na mão, uma garrafa de vinho e na face uma juventude que desabrochava após a eliminação de ervas daninha. Uma voz bradou de dentro da casa, a visita obedeceu a ordem e entrou.
Abel procurou na biblioteca, mas nada encontrou.

Estou na cozinha, ao lado da sala principal.

Era a primeira vez em que Borges pisava sobre um caminho que não o levava até a biblioteca. Na cozinha, Abel, com um sorriso no rosto, vestia um avental sujo de sangue e segurava uma faca na mão. Um calafrio de medo percorreu a espinha dorsal de Borges, como quem visse um assassino.

Estou preparando o prato preferido de Beatriz. Todo ano, em seu aniversário, nós preparávamos esse banquete e comíamos na varanda da casa, no terceiro andar. Espero que gostes de carne de javali.

Ainda se recuperando do susto, Julio B. serviu em duas taças de cristal o vinho preferido de Beatriz. A casa já não parecia assombrada. Era bem arejada e exalava um aroma de livro novo ou tinta fresca, como uma arte prestes a ser criada. Abel já não estava desabitado, possuía um espírito virtuoso, um sorriso cordial e uma voz mansa e sábia.
Jantaram na varanda da casa, sob uma lua cheia. Conversaram sobre arte, política, sentimentos, sobre a existência humana e a complexidade da vida. Por um tempo, esqueceram-se de Beatriz.
Abel assustou-se ao ver o relógio, os ponteiros, silenciosos, marcavam as duas primeiras horas da madrugada, lá fora, iniciava uma chuva sonolenta. Após a quinta taça de vinho o visitante decidiu aceitar o convite do anfitrião de dormir em um dos quartos vagos da casa. Borges já havia bebido demais para dirigir.
Na manhã seguinte, os dois amanheceram diferentes, como se o sol do dia queimasse com um fogo mais vivo e um vermelho mais quente.
É certo que durante o ano de 1951 os dois pensaram em se ver durante outras datas, reveillon, páscoa, ou um domingo qualquer, mas mantiveram o ritual do 14 de junho, mais por medo do que por desejo. E assim mantiveram até 1958, quando o inevitável aconteceu.
Borges chegou no horário do almoço, como estava acostumado a fazer. Foi até a cozinha, até a sala de estar, até a varanda do terceiro andar, mas não encontrou Abel. O velho, com cerca de 65 anos, estava sentado em sua poltrona na biblioteca, lia com uma concentração espantosa, como quem meditasse, como se livro e leitor fossem a mesma coisa. O olhar decidido do velho revelava com uma sanidade assustadora o que Borges temia ver durante todos esses últimos anos.

Entre. Este livro era o preferido de Beatriz. Não havia uma vez que nos víamos em que eu não lia pelo menos um parágrafo dessas palavras. Fui presenteado com essa obra prima literária ainda muito jovem, por um padre extremamente sábio durante meio tempo de seminário. Ele me aconselhou a ler esse livro para as pessoas que eu amasse verdadeiramente. E assim fiz, até hoje só li para Beatriz.

Que bonito! Qual o nome do livro, qual o seu autor?

Não tem título, nem autor.

Depois de uma longa pausa, para que o silêncio fermentasse a palavra seguinte, Abel, olhando fixamente para Borges, disse-lhe.

Julio Borges, meu querido, hoje, o que eu mais desejo é ler e reler esse livro para você. Como eu fazia com Beatriz. E o motivo é apenas um, eu te amo verdadeiramente.

Borges não se surpreendeu com o que ouviu, parecia já ter previsto tais palavras. Caminhou lentamente até Abel e sentou-se no colo do homem, como Beatriz sempre fazia. O velho sorriu e iniciou a leitura. O livro não tinha estória, nem páginas, nem palavras, nem início, nem fim. Era como A biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges.
A partir desse dia Julio. B passou a morar na mansão da rua Aleph e a dormir na mesma cama onde a vida de Beatriz foi concebida.
Na verdade, os dois compartilhavam apenas uma coisa: o amor recíproco.