domingo, 8 de abril de 2012

Brincadeira e prazer.

Desde pequeno eu tinha o costume de devorar livros. Um negócio um tanto selvagem, digestão rápida para uma refeição rápida, não importava se o banquete tinha 500 páginas. Comia depressa e continuava magrelo, faminto, sedento. Sempre bem disposto para mastigar palavras, saborear os sentidos constituídos na minha língua, e só na minha e de mais ninguém. Salivas que eu internalizava, e permanecia em mim como um segredo. Segredo não guardado a sete chaves, mas segredo que eu fiz questão de guardar, que não valia a pena contar para outros babões.
            Segui devorando tudo, a estante de livros em ruínas de meu avô, a última gaveta do guarda-roupa de meus pais, onde achei os russos e os alemães, e até mesmo na perigosa biblioteca da escola, onde eu era obrigado a roubar os livros, pois do contrário, a Tia me obrigava a entregar uma ficha de leitura, junto ao livro. Na escola, somente de forma clandestina, como já expliquei, conheci a boa comida brasileira, Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, o tempero apimentado de Jorge Amado e muitos outros. Sabores variados, muito mais que o feijão com arroz, que a escola insistia em distribuir na merenda e a população se contentava.
            Comia e não engordava, pois não comia para saciar a fome. A leitura atravessava a minha pele, o que estava dentro e o que estava fora, atravessava o estômago e a geladeira. E quanto mais eu lia, mais tudo era passível de descoberta. E eu, aos poucos, virava embrião, que nem chorar sabia.
            Mas certo dia, talvez por eu estar perto de sumir, de tão pequeno que me encontrava, como um espermatozóide, o livro me comeu. Minha língua se extinguiu, minha saliva secou, o meu chão virou céu, queda livre, mas a gravidade se foi também. Então descobri que o livro me comeu.
           
            E no gramado do quintal, brincavam, entre as flores brancas, logo após a chuva cessar, brincavam, sob o sol ainda escondido atrás das nuvens, agora não tão negras, brincavam, com as mãos sujas de lama, brincavam, escondidos da avó, que fazia bolo de chuva para o café da tarde, mesmo após o fim da chuva, brincavam, Margareth, Aristides e eu.
            E o dia voltou a ser dia, sem tempo algum.