sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

No caminho do rio.

O rio amanhecia antes do grito do galo iniciar a manhã. E junto com o rio, João também era outro dia. Antes da mulher e dos filhos acordarem João saía de casa, sempre com um adeus não respondido. Na realidade, o homem de cinquenta anos tinha mais intimidades com o rio do que com a família, era mais pescador do que pai.
O pescador só andava por dois momentos durante o dia, no caminho de ida até rio e no caminho de regresso do rio, no resto o homem flutuava sobre as águas, suas pernas eram a canoa e seus passos os remos. Esse era o seu dia, que também era sua vida. Cotidianamente carregava nas costas o mesmo peso da tarrafa e o mesmo destino, a herança de seus ancestrais, assim como a lua carrega o peso da noite.
Mas tem um dia em que até o sol esquece a sua sina de brilhar, um dia em que os nomes trocam de signo, as flores de cheiro, as cores de foco, os peixes de oceano e os homens de seres. Nesse dia de verdades duvidosas o pescador já estava sobre a canoa quando o improvável aconteceu. A canoa era levada pelo rio e João era carregado pela canoa. Seus olhos permaneciam atentos, esperando qualquer movimento suspeito nas águas para lançar sua tarrafa. Assim embalava-se o ritmo do baile, rio, canoa, pescador, olhos, tarrafa, peixe. Uma dança bem ensaiada. Porém, nesse estranho dia, o rio errou o passo, parece que travou os pés, tropeçou nas próprias pernas. A canoa parou, João parou, os olhos pararam e até os peixes pararam.
Nem gregos, nem troianos acreditaram, nem filósofos, nem boêmios aceitariam, mas esta era a verdade: O rio parou. O rio não passava mais, não corria, nem caminhava, estava parado, cessou seu caminho, estava fixo como uma pedra dormindo. Nesse momento um menino poderia dizer que entrou duas vezes no mesmo rio.
O pescador não podia compreender, o que fazer sobre um rio parado? Como lançar a tarrafa numa água que não corria? Não sabia para onde seguir, era como se tivesse perdido o aprendizado das pernas e a sabedoria da própria identidade. Um pescador sobre um rio parado não sabe andar.
Nesse momento de medo, João olhou para cima e compreendeu a mensagem divina, algum deus estava a dar a humanidade um caminho novo a ser trilhado.
O céu estava azul e suas nuvens pareciam a mata ciliar de um imenso rio. O sol, que há anos vinha transformando a pele de João em escama de lagarto, iluminava todo aquele mar celestial. Pois se o sertão não virou mar, agora, sobre os olhos de João, o céu virou mar. Os sentidos trocaram fronteiras e as palavras já não sabiam de que língua pertenciam. A cara virou coroa e a coroa virou plebeu. Babel era o mundo, mas tudo estava tranquilo, sereno, como o paraíso nunca esteve antes.
Era um brilho que quase fez cegar o pobre pescador, de uma luz que confundiu suas vistas e sua remota lucidez. O que era aquilo que brilhava no céu? Um peixe batia suas pequenas nadadeiras como se fosse uma andorinha. Suas escamas refletiam como um prisma, era luz para todos os lados. O peixe parecia um arco-íris a dançar no céu.
Primeiro percebeu um peixe, depois os olhos aprenderam a ver. Não era apenas um, era um cardume de arco-íris que nadavam no céu.
João não se intimidou, pescador que era, rapidamente armou a tarrafa. A tarrafa era como a extensão de seu corpo, obedecia seus extintos como os seus dedos obedeciam. Os olhos eram olhos de águia, fixos e atentos, pela primeira vez seu algo não estava submerso, escondido entre águas, agora era o ar. João lançou sua tarrafa para o céu e, pela primeira vez, pescou peixes voadores, encharcados de ar.
O gongá estava cheio e iluminado, de um peixe que saciava mais que a fome, que alimentava mais que o corpo.
O rio continuava parado, nenhum passo para frente, nenhum passo para trás. Não porque não soubesse aonde ir, não que estivesse confuso, desorientado ou cansado. É que as direções estavam trocadas.
O rio, pela primeira vez, disse: Vai pescador, estás livre! Escolha seu caminho, siga o que tiveres para seguir, és mais livre e leve que a água.
João, iluminado, enfim, foi ser rio de si.

O homem lagarto.


Era um dia de sol, de saturar as cores e os corações em uma magia colorida, que é o verão. No entanto, nesse cenário fabular, o homem lagarto vivia embaixo da ponte, na  sombra e sobra da vida, à beira do mangue. Não que ele fosse meio animal, com pele escamosa e áspera ou com calda longínqua, como se fosse uma personagem da mitologia grega. O homem lagarto, talvez, fosse o homem mais desumanamente humano da cidade.

Sob a sombra ninguém o via. Era um lagarto esquecido com sua lata de coca-cola na mão. Os outros viviam com outras próteses: o homem colorido com sua bicicleta e seu capacete, a mulher segurando firmemente o volante de seu carro, o menino de óculos e celular. O homem lagarto só levava sua lata vazia, onde ele cheirava o resto do que não havia bebido, inalava o resto do resto do resto da sociedade que construía shopping, casas e condomínios sobre o mangue que o homem lagarto se banhava e que justificava sua vida, sua palavra e seu nome, que ele mesmo apelidou, mas que ninguém sabe, porque o homem lagarto vive embaixo da ponte, na sombra e sobra da vida.

domingo, 5 de abril de 2015

Outros mesmos olhos

            João costumava debruçar-se sobre a janela e lá depositar seu tempo de criança. Gostava de ver as coisas passarem. E tudo, permeado pelo esquadro da janela, realmente passava. Passava boi, cachorro, vizinha, menino, mulher, avôs. Uns mais lentos, outros mais rápidos e assim passava também o tempo.
            Até que um dia, com os braços cansados de segurar sua própria cabeça, os olhos de João viu um homem passar, mas não era como as passadas rebolentas da farmacêutica Joana, ou como as pernadas arrastadas do jogador de dominó de fim de tarde, nem como os pulos borboleantes da menina encantadora que corria atrás do carro do picolé. A visão em questão passou de bicicleta. E João não sabia se ela voava ou se corria, se andava ou se caía. Era como se sentado, o homem pudesse dar a volta ao mundo. João ficou com perguntas atrás da orelha, era a primeira vez que João recebia uma pergunta, antes, tudo que via, só lhe mostrava respostas. O menino deixou a janela, e o homem e sua bicicleta passaram como se fossem os donos do mundo.
            Foi assim que João resolveu fechar a janela e fazer parte da paisagem.
            Correu para o lado da mãe e disse:
-        Cansei de ter olhos debruçados sobre a janela, agora terei olhos de bicicleta. Olhos que veem todos os caminhos, todas as estradas e que chegam a todos os lugares.
-        A mãe riu, como um adulto faz diante da fantasia infantil.
            Mas o menino disse sério e como alguém que coloca um par de tênis, João vestiu os olhos de bicicleta e saiu a desbravar o mundo. Passou por milhares de janelas, por diversos e desconhecidos caminhos. Viu frutos ainda não comidos, animais esquisitos e amores esquecidos.
            João até deixou a barba crescer, assim como o horizonte que sempre crescia a sua frente, o que fazia o menino sempre seguir. Um dia ainda pedalo sobre o horizonte, dizia.
            João não via mais os outros passarem, João só passava. Esse era o ponto de vista de quem tem olhos de bicicleta. Pé firme no pedal e rodas fortes pra sorte.
           Mas um dia, depois de passar por montanhas, matos, areias e pedras, o menino que nunca parava de pedalar, chegou à encosta de um rio. Era o fim do caminho para os olhos de bicicleta. João percebeu que não podia pedalar por todos os lugares e que não era possível sempre ir e chegar ao horizonte daquele ponto de vista. Era impossível pedalar sobre as águas.
       O menino entristeceu-se, sentiu-se novamente com as vistas enquadradas. Percebeu-se novamente dentro de uma janela. Assim tirou seus olhos de bicicleta e sentou-se com os pés na água. Ficou ali descansando, olhando o céu, ouvindo os pássaros e sentindo o rio passar. E o rio sempre passava.
            Foi quando João teve uma ideia, e por que não vestir os olhos do rio? O rio nunca volta, nunca é o mesmo. É certo que o rio não se repete e nunca para!
         João queria ser único, ser irrepetível. Ser a mais viajante de todas as coisas. Com esse pensamento de águas cristalinas, o menino vestiu os olhos de rio e saiu mata ciliar afora. Como quem não pudesse olhar para trás, João foi.
              Molhou quem conseguiu molhar. Conheceu as mais escuras profundezas, os mais esquecidos segredos confidenciados por pessoas que interagiam com o rio. Era comum por aquele mundo, pessoas conversarem com o rio na esperança de encontrarem respostas a boiarem sobre as águas. João conheceu peixes, plantas, polvos e povos. Mergulhou naquela aventura de ser rio. Por mais que ele quisesse permanecer mais tempo com uma criança que aprendia a nadar, com um peixe que fugia do anzol, com as lavadeiras que cantavam suas doces canções enquanto batiam com raiva as roupas brancas na pedra, João não podia, devia cumprir sua sina de sempre passar e não contrariar Heráclito.
            João finalmente estava feliz com sua natureza não concreta, de um líquido que nenhum quadrado conseguiria conter, que nenhuma mão poderia segurar. Mas sempre há um belo dia. Um dia em que o esquadro vem e nos mostra que há algo a mais para além do que nosso ponto de vista pode alcançar. Não se sabe se esse algo a mais é a realidade ou a fantasia que move nossas vidas. Mas João, que sempre quis seguir seu caminho de ida, sempre para frente, percebeu que um dia o rio cai, que o rio despenca como uma fruta madura. Logo a sua frente havia uma cachoeira e João percebeu que seu destino era a queda.
             Diante do medo, o menino não fechou os olhos. Olhou para o céu e procurou uma resposta, outro caminho possível, outro par de olhos para vestir. E enquanto caía encontrou. Vislumbrou lindas andorinhas a bailarem no céu. Voavam para todos os lados, com tamanha delicadeza e rapidez que nenhuma bicicleta e nenhum rio poderiam repetir. Para que ser rio e seguir somente para frente, se João poderia ser andorinha e voar para onde quisesse? Essa era verdadeira liberdade, alcançar os céus, voar com as nuvens e seguir em qualquer direção, aprender a dançar por todo o salão. Nesse momento João deixou seus olhos de rio caírem com a cachoeira e, como quem veste um par de luvas, vestiu os olhos de andorinha.
           Andar, pedalar, nadar, eram verbos bons, mas nada, para o menino, comparava-se com a experiência de voar. Olhar de cima para baixo, um ponto de vista que encheu os seus novos olhos de emoção. Quando sobrevoava florestas com as asas abertas, finalmente, o significado da palavra liberdade parecia decifrado. O menino com os olhos de andorinha gostava de se confundir com o vento, deixava-se ser levado como uma poeira para um destino não programado.
           O céu era um lugar livre, sem territórios demarcados, sem caminhos predestinados, sem cercas, muros, portões. Um espaço livre de estradas. No céu não existia nem dentro, nem fora, existia somente o estar. O que existia era o sol e a chuva, quando existia sinal de chuva o menino voava baixo, quando o sol iluminava as sombras esquecidas a andorinha voa alto.    
             O menino andorinhava pelo mundo com asas de liberdade. No entanto um dia o vento soprou forte, daqueles sopros que viram as folhas das árvores e dos livros, que mudam uma estória. E o menino com olhos de andorinha foi voar longe, sobre uma cidade de um céu cheio de obstáculos. Eram prédios, automóveis, antenas, barulhos estranhos, fumaças das distintas massas e cheiros tortuosos. Voar tornou-se perigoso e até tedioso. Nessa terra, até o céu parecia ter dono. O menino já não voava com as asas tão abertas e bailava com medo que pisassem em seu pé pelo salão. O menino percebeu que liberdade é também questão de lugar e existem certos lugares que não se toca música alguma.
            E num daqueles dias, chuvoso como o choro, em que voava baixo, perto das casas, dos muros, do asfalto e da vista das pessoas, João levou uma pedrada na cabeça. Primeiro pensou que do céu caíam pedras, como uma chuva sólida de água dura, mas depois viu uma criança comemorando na janela. Era uma criança que jogava pedras pela janela e festejava o tiro certeiro, a mira infalível e o poder que obtinha com sua arma de madeira e borracha na mão.
          João, que queria alcançar todos os caminhos, trilhar novos horizontes, compor inéditos destinos, explorar terra, água e céu, ser um sábio da imensidão e das coisas infindas, estava com o rosto estirado no chão. Suas asas não mais voavam e seus olhos perdiam a visão. João percebeu que o próprio homem criava armas para cercear a liberdade. Percebeu que o homem era mais talentoso em destruir a liberdade do que promovê-la. Era impossível ser livre? Nem bicicleta, nem rio, nem andorinha, todos tinham seu fim. O menino não sabia que o fim sucede todo início.
            Quando estava prestes a piscar os olhos pela última vez, quando já ensaiava o adeus definitivo, João encontrou um par de olhos esquecido ao lado da cesta de lixo. Era um par de olhos deixado para depois, negado, substituído. Um olhar de papel de bala ou casca de banana. Um olhar mundano, quebrado talvez. Devia ser um olhar torto, sujo, miúdo. O menino que estava com o rosto no chão resolveu vestir um par de olhos de chão. Era um ponto de vista de restos.
              Ao vestir tal despropósito, o menino instantaneamente reconheceu aquele olhar infantil. Era o olhar de sua infância, era o seu próprio olhar do qual já não era mais dono. O par de olhos de janela substituído pelo olhar de bicicleta. Mas nada era como antes, nem o menino, nem a janela, nem a paisagem. No início o olhar parecia não funcionar, estava enferrujado, fora de forma, de foco, mas aos poucos João foi aprendendo a ver. João percebeu que a arte de ver também é uma aprendizagem, que também é possível constituir a paisagem com o olhar, que o ponto de vista também constrói o objeto. O menino, caminhando pela rua, e vendo o mundo pela primeira vez com os seus próprios olhos compreendeu que deu a volta ao mundo não para alcançar e desbravar o mundo, mas para explorar o seu próprio ser. E João então caminhava feliz, com um olhar vagabundo, um olhar de uma alma que se encantava com a rua e com as coisas demoradas e simples dela.
            O menino percebeu que dentro de si havia uma bicicleta que dava a volta ao mundo em duas rodas, um rio que sempre passava, uma andorinha que bailava no céu, mas era preciso saber enxergá-los.
           João voltou para casa, comeu um pedaço de bolo de fubá que esfriava sobre o fogão, tomou um copo de suco de maracujá com laranja que o esperava sobre a mesa. E enquanto explorava tais experiências o menino ouviu o carro do picolé passar. Saiu correndo com o seu olhar infantil e alcançou a menina que corria com os seus pulos borboleantes. Ela, que parecia sempre esperá-lo, estendeu-lhe a mão com um sorriso afetuoso, com seu olhar encantador. Os dois, mãos e sentimentos dados, seguiram seus caminhos, seus próprios caminhos.











           
             


            

terça-feira, 31 de março de 2015

Uma passagem e um retorno.


            Eu estava correndo, nem sabia para onde. Era um compromisso na avenida Cândida, que não consegui resolver no dia anterior. Uma semana terrível aquela, pois estava resolvendo os compromissos acumulados da semana anterior.  Pior de tudo é que todos estavam com pressa. Em abril é assim, corremos atrás dos atrasos de março. É uma confusão, idas e vindas, entregas e recebimentos, apertos de mão e fechamentos de negócios. Reuniões para resolver os assuntos das próximas reuniões. Quem vai escrever as atas que nunca serão lidas? Ora, o tempo voa e ninguém volta, estamos sempre atrás de algo, nunca no lugar certo, nem na frente.
      Os compromissos são células que se multiplicam por meio de meiose, estão sempre se reproduzindo. Onde tinha um, tem quatro.
            Mas eu estava correndo e não filosofando sobre o tempo. A avenida Cândida, do número 1 ao 100, é uma subida íngreme que acumula compromissos do ano passado. Quando encontro um amigo correndo e não finjo que estou falando no celular, costumo marcar de um dia marcar de tomar um cafezinho. A rua tem 500 escritórios, de responsabilidades e gravatas variadas e reuniões distintas. Há 10 anos era um morro que as vacas do Senhor Miro pastavam, mas rapidamente, o centro urbano, que também é uma célula que se reproduz por meiose, engoliu-a. Os matos viraram asfalto e as vacas carne moída. Os muitos recém-formados em arquitetura, que se formam rapidamente, já não sabem projetar museus com estruturas torneadas, como o corpo de uma mulher. Os novos arquitetos projetam prédios para escritórios, todos com os andares iguais, repetidos, como numa reprodução por meiose. Um quadrado de vidro com várias repartições cambiáveis e dá-lhe ar-condicionado para recompor o conforto térmico. Os arquitetos artistas chamam suas obras de organismos vivos.
            Acontece que todas as horas é o mesmo rush. As pessoas correm e se chocam durante a subida e a descida. A avenida Cândida parece o mundo. Ninguém se importa com o desvio de olhar, com a não gentileza, com o “bom dia” não dito, ou o “você primeiro, por favor” deixado para depois, ou então o “com licença” substituído por um empurrãozinho. Todos se esmagam. Uma população que aprendeu a deletar o outro.
            Mas nesse dia, que eu estava na rua Cândida com os compromissos do dia anterior acumulados da semana passada, eu vi uma assombração que paralisou meu fluxo de pensamento, que freou até mesmo o sangue que corre em minhas veias. Fez-me esquecer de todas as reuniões, de todos os compromissos, fez-me soltar o nó da gravata, que me asfixiava ao caminhar e, por um minuto, parar de seguir esse caminho livre que me obrigam a seguir.
            Como voltar a viver depois daquela imagem? Aquele absurdo nu e cru sobre meus olhos. Um disparate. Uma afronta. Como voltar a correr? Aquela senhora revelou-me que não é mais andando que percebemos as algemas que nos prende, hoje, andar é a própria condenação. Subir e descer a avenida Cândida e nunca parar, eis a minha prisão.
            Era uma paisagem que negava a própria existência contemporânea. Nenhuma palavra era possível para representar o tormento que eu senti naquele momento, era como voltar da guerra e tentar socializar a experiência.
            Era uma senhora capaz de segurar água entre os dedos da mão. E estava ali, do outro lado da calçada. Enquanto subia a avenida Cândida, vi aquela senhora, que mais parecia uma célula morta, que não se reproduzia. Era uma velha de um tempo passado, que existia em outro ritmo, devagar como o horizonte. Enquanto todos corriam, ela andava. E ela não apenas andava, como se pudesse quebrar o fluxo, ela andava devagar, como se não andasse sobre uma fina camada de gelo. Ela andava com uma muleta, a contar os passos. Aquela senhora arrastava os pés, como que ciscando o chão, como se fosse uma vaca do Senhor Miro pastando no alto do morro. Ela zombava da cara de todos os corredores que deixavam suas identidades caírem do bolso.
            Quem era ela? Quem ela pensava que era para andar com todo aquele tempo nas mãos. Eu olhei uma, duas, três vezes, e ela parecia estar no mesmo lugar. Ela demorava até para respirar, demorava para coçar a testa e limpar o suor que escorria lentamente de seus ombros. Ela demorava para morrer. Ela se ancorava no muro e parava para descansar. Eu, que nunca tinha parado, observei tudo aquilo. Eu poderia dar a volta ao mundo, e a velha continuaria ali, nos seus passos de lesma, como se o mundo não fosse feito de reuniões e compromissos.
            Pensei em tirar o terno, o sapato e seguir em passos lentos e ternos. Pensei em ser como aquela senhora, que andava devagar, que olhava devagar. Pensei em viver em outro tempo, e não mais caminhar sobre esse bloco de gelo que me faz correr a todo o momento.
             Mas logo fui empurrado e arrastado pela multidão. Eu voltava a ser mais um no meio daquela rua cheia de gente e que sobra solidão. Novamente eu estava sozinho, seguindo uma direção sem lógica nem moral, como esse conto.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Joana e quem?


     A mulher estava no quarto quando o homem chegou. Não moveu nenhum dedo, nem sequer se embelezou. Deitada, em meio sono, lembrou-se do tempo que esperava o marido no portão, com a boca cheia de alguma coisa. Agora, nem do quarto saía. Na verdade, nem mais conhecia o homem que entrava pela porta da casa nova. Como era o seu olhar? Como sua barba crescia? Como sua pele cheirava? Como ele vivia? Algumas lembranças remotas não chegavam a responder. Perguntas que não mais cabiam fazer.
      O homem chegou e foi direto a cozinha. Nada disse, nada ouviu. Somente os sapatos arriscavam alguns dizeres pelo chão. Uns sussurros, abafados pela sola do sapato e pela força do tempo.
    O jantar esfriava sobre o fogão. Ela, ainda deitada, ouvia o barulho dos pratos, dos talheres, e do macarrão a crepitar na panela, como ele sempre fazia. Ela odiava o péssimo desempenho culinário do marido. Mas com o passar do tempo o ódio tornou-se indiferente e o barulho do macarrão a crepitar inaudível.
      Ele chegou do trabalho com tanta fome que já não se lembrava de que alguém dormia no quarto ao lado.
      Ela trabalhava durante à manhã e à tarde. Ele trabalhava no turno da tarde e da noite. Nos dias ímpares ele preparava o jantar e deixava sobre o fogão e nos dias pares era a vez dela de deixar o jantar esfriando nas panelas. Os dois organizaram suas rotinas de uma forma tão perfeita que não precisavam mais conversar para que a relação perdurasse. O sistema estava tão bem montado que só bastavam repetir as tarefas para a máquina não quebrar. O sistema estava tão bem fechado que não conseguiam sair dele.
      Quando eles casaram, havia amor. Como dos demais casais que casam. Mas com o passar do tempo o amor acabou, como dos demais casais que se mantém casados. O problema é que na relação de Joana e Carlos nada ficou. Às vezes fica uma dependência, um afeto, uma amizade, um respeito, um carinho, uma cumplicidade, ou alguns filhos. Entre os dois o amor acabou e nada restou. Assim, nada existia.
      Nos finais de semana Carlos gostava de descansar. Deitava-se em qualquer lugar, no chão da cozinha, na grama do quintal, no sofá da sala. Durante a semana ele não podia fazer as coisas que gostava por causa do trabalho e nos sábados e domingos descansava para poder trabalhar durante a semana. Com o passar do tempo já não sabia do que gostava, então fechava os olhos e os sentidos e descansava, que era uma das coisas que ainda sabia fazer. Nos finais de semana Joana gostava de limpar a casa. Arrumava todas as coisas que não usava em nenhum momento, e que só serviam para serem limpas. E assim varria o chão da sala, lavava todas as louças de porcelana que a geração de mulheres de sua família acumulou, lavava as roupas que não usava, mas que estavam sujas e trocava os lençóis da cama. Das coisas que gostava de fazer durante os dias de folga era de ouvir o som da máquina de levar, que soava como música e de observar as roupas bailarem lá dentro. O final de semana eram dois dias e demorava a passar para Joana, por isso ela demorava ao esfregar os vidros das janelas.
      Em diferentes momentos Joana chegou a varrer o marido para fora de casa. Ela não o via deitado no meio da sala. Ele não sabia deixar sua condição de sujeira. Teve um dia que Carlos acordou dentro da cesta de lixo. A esposa, certamente, deve ter o confundido com uma casca de banana. Teve um dia que Joana, ao esfregar com muita força as janelas, quebrou um vidro e machucou a mão, mesmo assim ela não parou de limpar o vidro que não existia e assim continuou a fazer durante todos o finais de semana restantes.
      Carlos, quando jovem, esforçava-se para guardar uma quantia de dinheiro em cada salário recebido. Ele fez uma poupança para gastar no futuro com a esposa, mas o futuro nunca chegou e ele não gastou nada do que muito economizou. Agora, velho e doente, Carlos já não sabia com o que gastar, mesmo não sabendo mais o que era futuro e com quem foi casado.
      Numa terça-feira, quando a casa estava bem velha, Carlos não foi trabalhar, foi sua primeira falta depois de tantos anos. O homem também não levantou para tomar café, nem para ir ao banheiro. Carlos morreu enquanto dormia ao lado da esposa, sobre a cama do casal. Carlos morreu, mas parecia descansar. Joana só achou uma coisa estranha, não encontrou a comida esfriando sobre o fogão.
     No sábado, ela levantou-se cedo, bem disposta para a limpeza semanal. Abriu toda a casa, um cheiro podre impregnava todos os cômodos. Joana varreu o chão da sala, tirou o pó da estante, lavou a louça da pia e, também, trocou o lençol da cama. Pegou o lençol sujo, que fedia como se tivesse um amor morto dentro e colocou-o na máquina de levar. Lavagem turbo e enxague extra. Ali onde estava, na área de serviço, escutava a sinfonia da máquina de levar e assistia à dança da roupa suja, dois pra lá, dois pra cá. O baile enchia Joana de prazer.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Caminho de casa

            Eu passei pela minha rua, inúmeras vezes. E outro caminho era inviável, intransponível, pois essa rua é intrínseca a mim, como a minha infância, como um ser que sou e desconheço. O trajeto se mostra calmo e sereno, assim como os meus passos. Passados os anos e lua permanece cheia, de paisagens constantes a minha rua.
            O caminho é argiloso, de um alaranjado que parece refletir o sol, assim como o mar de Monet que abarca a paleta de tons azuis do céu. A argila pede pés descalços, como se em cada passo fosse possível esculpir o tempo.
           A rua se espreguiça sem um propósito de final, não leva a outra parte, horizontaliza-se nela mesma.
            Eu passo mais devagar que o vento, como se retardasse o tempo. Na margem da rua, nada mais há além de uma velha casa, que mais parece um organismo vivo, que pulsa elementos para os cinco sentidos. Uma cerca de madeira, que não se faz de fronteira, circunda a casa e o seu jardim. Uma cerca de meio metro, de madeira velha, íntima da terra e dos pássaros.
           As flores do jardim são flores primárias que se desabrocham em pigmentos de outras naturezas, até formarem um ciclo cromático com aroma de verão.
            A casa, que nunca entrei, que de tão minha tenho medo de não saber sair, permanece um segredo pra mim, e daqui de fora ainda não posso ver o livro que repousa na cabeceira da cama.
           Mas o mistério ou o êxtase que move a minha eterna caminhada, de tantas idas e voltas que já não sei quantas vezes passei, por essa rua e por essa mesma casa que é vizinha de si mesma, essa casa que é minha, que é tanto história quanto corpo, é a mulher que me espera no portão, eis o mistério. Uma mulher que muda e não sei aonde vai. Se na ida é Luiza, na volta é Martina. Eu não sei quando se transforma, se vem de dentro ou vem de fora. Nunca sei até quando fica e se retorna.
            Essa mulher, que também é meu amor, que não sei se está de saída ou se trouxe consigo um ser de eterna estadia, com sua casa e sua rua e que um dia vai me convidar para entrar.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O pôr do ser.

              Maria poente engravidou-se e ao invés de criar barriga, diminuiu-se. Esburacou um vazio em seu ventre. E a criança, que chutava o nada, era como a luz do luar, que ilumina o mar sem ter luz. Parecia uma barriga em eterno estado de lua minguante. E a menina se minguava.
           Nas conversas de família Maria Poente explicava É tudo uma questão de percepção. A lua cheia é a mesma lua que a minguante. Ambas são completas e redondas. A minha barriga está do outro lado, que ninguém vê, porque vocês ainda não sabem ver.
           Os vizinhos caçoavam, diziam que se dona Poente continuasse a se esburacar no ventre, viraria brinquedo de bambolê para as crianças da rua rodarem.
           A sua mãe, ao faxinar a casa, sempre procurava a barriga perdida, devia de estar em algum lugar, mas nada achava. Desejo a menina também não tinha, nem comidas escamosas de madrugada, nem guloseimas cremosas na alvorada.
              Os médicos vinham de todo lugar e faziam juras, planos e mandingas, todos queriam estudar o vazio de Poente, queriam solucionar o enigmático problema e encontrar a barriga sumida.
               Deixem essa criança não estar, que assim ela fica em melhor lugar. Minha não barriga não é problema, só está do outro lado. Problemas mesmo são essas verdades espaçosas que não deixam quem é da mentira viver.
               A criança nasceu e ninguém viu. Nasceu tão vazia quanto a barriga, nem arrebentou o choro na madrugada. A avó não deu a benção, o padre não a batizou, o médico não bateu na sua bunda três vezes. Somente Maria Poente conseguia ver sua cria e carregá-la no colo, trocar a frauda, dar de mamar, ensinar as palavras.

          Vocês só sabem olhar com olhos que procuram a falta e assim nada veem. Essa criança invisível é tão completa que ninguém consegue ver. O dia em que as pessoas conseguirem ver o todo, palco e bastidor, quando essa gente tonta puder ver a completude da lua minguante e saber dar a volta e ver o que tem do outro lado, assim, talvez, a terra nascerá outra, duas vezes iluminada.