sábado, 29 de setembro de 2012

As palavras intrusas

Fechem as janelas
as portas
as venezianas
os olhos
e os ouvidos.
Ventos intrusos
que folheam as páginas do conto
que mudam as leituras
o lugar das coisas
e as coisas do lugar
vão entrar.
as imagem mudam
os olhos mudam
a boca muda
ventos intrusos
que trazem palavras
contrapalavras
histórias
vividos
ventos que entram pelas paredes
que despenteiam meu cabelo
e meu sorriso
ventos intrusos
que não são de ninguém
que entram sem pedir
e que me diz
que me encontra
que me leva
que me traz
que, num sopro ao ouvido,
me apresenta um outro Eu.

domingo, 23 de setembro de 2012

Confissões do menino estudioso.

Entender a ordem,
a disciplina
e o comportamento em uma roda punk
é fácil.
Difícil mesmo é
entender a lógica da
roda de interpretação de texto
que a professora de português propõe.

domingo, 16 de setembro de 2012

O menino que virou lembrança de si mesmo.

           A culpa de tudo foi de Doralice, ela que invadiu a memória do menino sem permissão. E não saia de lá por nada. O menino então resolveu apagá-la, foi à livraria e comprou uma borracha. Uma borracha que apagava gente.
O menino queria apagar a lembrança de Doralice. Apagou a própria cabeça, só deixou o pescoço. Já não via, ouvia e nem falava, mas ainda lembrava. O menino teve que apagar um pedaçinho do pescoço, criou um buraco para a comida entrar. É difícil comer sem cabeça, mas ele se acostumou com o tempo. Foi então que começou a comer pedras, tudo que ele achava no chão comia. Coisas esquecidas, rabiscos rabiscados e intermináveis, as coisas esquecidas antes do fim. Ele se alimentava de esquecimentos.
As crianças do bairro riam do menino sem cabeça, chamavam-no de Palito de fósforo, mas para quê serve um palito de fósforo sem cabeça?
         O problema maior é que ele ainda lembrava-se de Doralice, a menina das lembranças. Se apagar a cabeça não adiantou, por que não apagar o coração. Sua razão estava falha desde que a cabeça virou pó. Sem piedade, apagou o coração. Por sorte não morreu, agora ele comia pelo buraco do coração. As meninas riram, falaram que ele não se apaixonaria mais na vida e que nenhuma menina iria amar alguém sem coração. O amor vive de trocas, se tu não tens um coração para me dar, nada vale amar. O menino nem tinha olhos para as outras meninas, só lembrava-se de Doralice, essa sim tinha uma relação estreita com as lembranças.
       O menino queria apagar as lembranças. As lembranças que doíam à noite. Mas onde mora a lembrança? Será que a Doralice mora onde a lembrança mora? Será que elas dividem quarto? O menino só queria apagar o quarto onde a lembrança e a Doralice dormem. Mas o menino não sabia apagar memória, na escola só o ensinaram a apagar palavras e números, coisas de lápis, não da vida.
         Sem cabeça e sem coração o menino resolveu apagar seu pênis. Foi uma ação engajada, queria apagar qualquer questão de gênero. Uma busca por liberdade, sem classificações e estereótipos. Busca em vão, coitado. Quando ele apagou o pênis toda a cintura apagou-se também. Foi uma confusão. As pernas estavam livres e começaram a correr por todas as direções. Eram pernas que andavam sozinhas. Eram pernas que andavam com as próprias pernas, o que não deixa de ser liberdade. Teve um dia que a perna esquerda saiu para comprar um cigarro e nunca mais voltou.
         Após duas semanas o menino ficou assim: sem uma perna, sem a cintura, sem o coração e sem a cabeça, mas ainda era um menino bonito. O problema, mais uma vez, é que a lembrança de Doralice permanecia forte. Acho que com a ausência do coração e da cabeça sobrou mais tempo para a lembrança de Doralice.
       Doralice, a menina que vivia lembrando-se da vida, do tempo de criança, foi morar na lembrança do menino, lembrança tão forte e tão grande que acabou por apagar o menino por inteiro.
Sim, numa gélida noite o menino resolveu se apagar por inteiro, mesmo sem a mínima noção do que é o ser inteiro. Apagou o pescoço, como quem se suicida na forca. Apagou a perna direita, o peito, a barriga, a braço esquerdo, o braço direito. Não sobrou um pelinho para contar a história. O menino sumiu.
Apagou tudo, mas esqueceu das lembranças, a borracha não chegou lá. E o menino que não tinha pulmões para respirar e nem pele para coçar virou memória, virou lembrança. Foi morar no espaço e tempo da lembrança. E é lá que todos os sábados à tarde ele encontra Doralice para tomar um sorvete e lembrar dos tempos de meninice.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Poeminha ridículo.

E já dizia Fernando Pessoa, "Toda carta de amor é ridícula, se não for ridícula não é uma carta de amor".


Avisem aos marinheiros
ou às árvores de plantão
Que se caso eu morrer
                                  [de alegria]
a culpa é da Marília
Avisem aos companheiros
e também meu pobre irmão

Avisem às paredes
                           [só as com ouvido]
e não esqueçam dos amigos

Corram lá e certifiquem minha avó
e os que já foram dessa pra melhor

Deixo aqui meu recado
você fique avisado

se eu morrer de alegria
a culpa é da Marília
se eu morrer de alergia
a culpa é da Marília
se eu morrer de hemorragia
a culpa é da Marília

mas se eu morrer de amor
a culpa, mais ainda, será da Marília.




sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Confissões do menino sol

A árvore que a minha mãe plantou
começou a dar pés de guarás.
Pés, cabeças e asas de guarás
Era a árvore mais florida da rua
e por isso a mais bonita.
mas todo dia de manhã era
uma cantoria de guará
E não era só guará vermelha não
era uma árvore de todas as cores.
O frutos eram muito saborosos
e cheiravam a bater de asas.
Teve um dia que comi
um guará podre, sujo de chão
minha cabeça pintou-se de azul
e meu dedão do pé, de vermelho
me colori
criei asas
dessas que voa
e voei.
voei que voei
eu era todo pena
mas feliz.
Agora eu falava a língua dos guarás

E foi assim que descobri
que as aves
são pedaços de sol

as árvores e as flores também.

e eu também.

domingo, 2 de setembro de 2012

O menino que se perdeu



O menino moderno,
todo cheio de si
Todo dono de si mesmo
Saiu para explorar as terras vizinhas
Abriu a porteira do sítio da avó
E saiu por aí
Queria ser um desbravador
Como os super-heróis que ele conheceu
Nas aulas de história
Deixou a barba crescer e comprou uma espada
Galopeou com seu cavalo branco
Atravessou rios
Subiu e desceu montanhas
Se apaixonou por uma índia
Caçou animais
Foi caça de animais
Aprendeu línguas
Desaprendeu línguas
Conheceu pessoas
O seu Antônio, a Fátima
O Zé azul, o Márcio da dona Zuleide
O butiado, esse adorava comer butiá.
Desaprendeu pessoas
Todas elas.
O menino desbravou que desbravou
E a terra já não importava
A terra girava, era isso
Como tinha de ser,
A terra girava.
e o menino se perdeu
o menino moderno se perdeu
e voltou para o sítio da avó chorando,
chorava que chorava
estava em prantos
desnorteado
chorava que chorava
 a mãe tentou acalmá-lo.

- Calma meu filho, se recomponha. Você não está mais perdido, você está aqui em casa.

O menino enxugando as lágrimas, falava chorado, suponho que saiba como é falar chorado?

- Mãe, mas eu me perdi e não me encontro mais. Eu me perdi de mim – agora ele chorava desesperadamente – é que esse bolo de fubá não tem mais o mesmo cheiro, essa toalha de louça não seca mais as mesmas coisas, a sua voz tem outro peso, as palavras dizem diferente.
É que o Eu ficou por lá, eu me esqueci lá na cachoeira e quando voltei eu já não estava. Não me achei mais. – o menino continuou falando chorado – acho que fui levado pelo rio mãe. Eu nunca vou me achar?

A mãe, falava com um sorriso escondido na boca, sabe como é?

- Vai ser difícil menino, esse rio não tem retorno, são águas irrepetíveis. Mas deixe de chorar, isso normalmente acontece com quem costuma viver. Um eu em cada esquina. Um eu em cada outro. Um eu em cada bolo de fubá. Só é um pouquinho difícil lidar com isso.

O menino sorriu. A mãe já falava sem esconder o sorriso.

- Agora venha cá comer esse bolo de fubá, aposto que você nunca comeu um bolo tão gostoso na vida.

sábado, 1 de setembro de 2012

O olhar sensível


Fazia muito tempo que meus olhos não viam longe
Que não viam distantes
Que não viam quilômetros
Que não saiam por aí para brincar
Era tanto espaço, tanto vento solto,
Tantas estrelas, tanto luar,
Tanto chão e tanto ar
Que até me sentia livre
Sem paredes, sem quadrados
Sem repressões de cimento para os olhos
E sem ruas que guiasse os passos futuros
O caminho estava livre
E os olhos queriam correr
Pareciam crianças ansiosas ao ver um parque de diversões
Correram que correram
Subiram em árvores
Beijaram o rabo da vaca
Conversaram com a uva, se identificaram muito
Nadaram
Pularam entre os morros
Pularam entre as estrelas
Mas respeitaram o repouso da mãe lua
E pediram sua benção
Os olhos se despiram
De seu ver civilizado
Esqueceram-se de olhar para frente
E bateram num rígido tronco de árvore
Se esbugalharam em pedaços
E riram que riram
Tal qual criança travessa
Foi quando estraguei meus olhos
Quando desregulei meu olhar
O olhar criança,
O olhar estrangeiro
O olhar transgressor
O olhar sensível
A partir desse dia
Passei a ter um olhar sensível para as coisas
Tal qual o poeta
E quando voltei para as paredes
Para os condomínios
Para os paralelepípedos
Para o centro
Para a prisão dos olhos
Eu já via diferente
Via invisibilidades gritantes
Via o que não tinha cor,
A esperança
Via o que não tinha formas
A dor
Via o que não tinha massa
A fome
Via a inspiração e a expiração
que caminhavam em marcha lenta
A inspiração que entrava em depressão.
Via a singularidade
A incompletude
e o inconformismo
no conforto do conformismo.
A vida e a poesia
que se espremiam e se confundiam.
A dor, a espera e a esperança
A leitura, a escrita e a luta
Os olhos sensíveis passaram a ver
Passaram a se mover
E passaram a produzir lágrimas também.
Como os olhos de um romântico sonhador.