segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Do início das cores

A nudez
em frente a tela branca
nos pelos
dos pincéis.

Invisível ação.

O ponto não se faz pronto
nem um traço
linha e liberdade.
O branco encruzilha as palavras
as letras e suas cores complementares.

mas um instinto transpassa a fronteira
como uma avalanche
de tinta à óleo
descendo a ladeira.
Uma montanha de neve.
A palavra chama a palavra outra.
como a cor que existe no contraste.
Uma pincelada chama a pincelada outra.
A tela branca já não impede
O magenta impele
uma canção entoa
e uma paisagem começa a nascer
como se fosse uma obra de sete dias.

domingo, 23 de novembro de 2014

A anunciação de todos os dias.

             O dia estava no seu fim, e Ana também.
            Entrou esbarrando nas pessoas, ouvindo e recebendo xingamentos, dando e levando empurrões. O mundo selvagem não lhe dava folga nem dentro do ônibus, na volta do trabalho. Ana sobrevivia como podia, apesar de quase nada poder e morria mais do que vivia. Conseguiu chegar ao fundo do ônibus e lançou seu corpo passivo na poltrona, como se fosse uma carne de açougue, já longe de um ser e de uma alma.
            Esse era o único momento do dia em que Ana podia pensar. Durante o dia ela trabalhava no restaurante e à noite ela cuidava dos filhos. A viagem de ônibus era um ritual de passagem, em que Ana não sabia se mergulhava em seu íntimo ou se fugia do que era ela.
            Estirou-se na poltrona como se fosse uma rainha. Descalçou os chinelos e subiu o vestido na altura da coxa, pensando ter vinte anos. A sacola da feira estava no chão. Um repolho de pele enrugada e feia, berinjelas caídas próximas ao umbigo e jabuticabas sem cor, de olhar nulo. Na mão segurava um pepino que não formaria o jantar, nem o almoço. Era apenas um objeto fálico que Ana alimentava, no ônibus, seu outro apetite.
            Ana sabia que era invisível, por isso ousava em suas atitudes durante a viagem. Encarava todos os homens dentro do ônibus e inalava o cheiro de cada um, distinguia-os entre os que trabalhavam carregando coisas na rua e os que ficavam dentro de escritórios. Mas todos poderiam ser seu pepino. Ana preferia os homens em pé, assim poderia analisá-los dos pés a cabeça. Excitava-se com aqueles de braços levantados e musculosos, com um pedaço da barriga à mostra e uma imensidão de prazer. Nesses momentos Ana experimentava movimentos acrobáticos com seu objeto. Ela queria jogar seu corpo apático e passível, sem energia alguma, no colo de algum daqueles distintos personagens que enfeitavam sua viagem. Ela subia ainda mais o vestido e imaginava todos os homens entrando ali, até o motorista e o cobrador. As pernas abertas para a visita entrar. O ônibus pararia e eles ficariam ali para sempre, sem emprego e sem filhos, era o que Ana pensava.
            Mas logo o pepino caía, murchava, e o vestido voltava a encontrar os pés.
            O cansaço fazia Ana pensar em lamentações. Não sabia por que trabalhava tanto, por que o filho ainda não aprendera a ler, por que o marido não havia voltado para casa depois de três anos. Pensava na sua condenação, na vida que carregava - e como era pesada. Nesses momentos lembrava-se de Maria, a mãe do menino Jesus. Maria também sofreu. Ela deveria ser feliz, deveria cantar e dançar com José, ir ao parque, comer sorvete de creme e namorar de mãos dadas. Naquele tempo não havia trânsito, nem ônibus lotado de gente cansada, tudo era mais fácil. Mas o arcanjo Gabriel entrou pela janela com suas asas de pássaro silvestre e lhe anunciou a vinda de Cristo. Maria estava sentada e quando levantou já carregava a vida crucificada na barriga. Ana carregava nas costas, como se fosse uma punhalada não avisada e não um presente divino. Ana não teve anunciação nenhuma e não entendia o seu carma. Carregava um castigo e não uma salvação. E se Maria tivesse dito não ao arcanjo Gabriel? Sem dúvidas sua vida poderia ser mais leve e seu pepino mais saboroso.
            Ana olhava para a janela do ônibus e não via nenhum arcanjo. Ana olhava para o céu e não enxergava nenhuma esperança. Pensava em seus filhos em casa. Coitados! Teriam também o mesmo destino do filho de Maria?

            O final da viagem chegaria e Ana desceria do ônibus cambaleante, o cachorro da vizinha latiria incessantemente, como fazia todas as noites. Os filhos a aguardariam ao redor da mesa e os três seres esquecidos jantariam juntos, sem conversarem sobre o dia, que tentavam esquecer. No dia seguinte Ana sairia para trabalhar e não se despediria dos filhos, que ainda dormiam. O cachorro latiria e a porta do ônibus se abriria para mais um desafio, como fazia todos os dias. O sol também nasceria, lindo, quente, brilhante e único, mas Ana, mais uma vez, não o veria.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O retorno a ausência.

Leonard acordou ofegante, mais assustado que cansado.
Suas mãos pareciam calejadas. Estavam tensas, procurando algo para se apertarem, para redescobrirem a existência.
Vagarosamente Leonard retomou a consciência, como se ela estivesse ao alcance das mãos e dos olhos, ao lado de Kafka, sobre a cabeceira da cama.
Ainda era noite e o quarto permanecia num breu quase total. Talvez por isso, e essa foi a explicação que Leonard lhe deu, a consciência não funcionou como antes. Algo estava fora do lugar. Não fisicamente, as pernas não foram substituídas por patas de um inseto monstruoso. O que saíra do lugar foram certas verdades estruturais, como se suas colunas gregas estivessem em destroços.
Deitado na cama retomou o sonho que tivera durante à noite.
Na viagem noturna sonhara que era um macaco. Todos os seus pelos cresceram, ele se sentia confortável. Os braços aumentaram, ele se sentia forte. Mas sua racionalidade continuava a mesma. Mantinha sua memória de homem do séc. XXI. Assim, Leonard desfrutou das vantagens de ser um macaco.
Vivia na floresta e era o único animal que reinava naquele habitat que parecia imenso e quase infinito. Para todos os lados eram árvores, todas crescendo e frutificando.
Para se locomover Leonard não usava as pernas, não conseguia ficar ereto. Desenvolveu uma técnica muito mais eficaz, usava a força dos braços para pular de cipó a cipó, era como se voasse entre as árvores. Com as mãos tensas o novo macaco segurava-se num cipó e depois em outro e depois em outro. Os cipós, não resistentes a força do macaco, sempre caíam. Para Leonard não cair, para não despencar de sua nova existência, apertava ainda com mais força, num cipó ainda mais alto.
Quando a racionalidade do homem do séc. XXI veio à tona, vencendo o instinto animal, Leonard percebeu que estava preso na floresta, refazendo os mesmos movimentos. Que um cipó só levava a outro cipó. As paisagens eram sempre repetidas.
Nesse momento de iluminação um cipó jogou Leonard, violentamente, sobre uma biblioteca. O homem caiu sobre milhares de livros e quando percebeu estava mergulhado numa biblioteca que parecia ser infinita.
            O homem ficou feliz de ter novamente suas mãos delicadas e seu polegar opositor. Movido pelo instinto Leonard andava de livro em livro, pulava de teoria em teoria. E assim, como os cipós, as teorias caíam. As verdades despencavam e Leonard, para também não cair, agarrava-se ainda com mais força em outro livro.
            Não existiam evidentes diferenças entre o macaco e o homem, nem entre os cipós e os pensamentos. Os pensamentos, no sonho de Leonard, eram como frutas no pé de uma macieira, que duram seu tempo e depois caem. Como tudo na natureza. Assim, o homem, para não cair, pula de pensamento em pensamento e quando um cipó quebra e cai, o homem se agarra em outro, fantasiando um movimento linear e evolutivo.
            Todas essas imagens e incompreensões permearam os pensamentos de Leonard por um longo período após seu despertar.
            Até que a alvorada veio anunciar mais um novo dia e o sol raiou iluminando o quarto ainda escuro, revelando aos poucos os livros na estante.
            Leonard, com medo de repetir os caminhos, levantou e fechou a janela.

E caiu.

Minha metáfora

Eu fico parado
sentado num banco qualquer
vendo tempos, lugares, amores.
Todos passam
as oportunidades são mais leves que o ar
as portas abrem e fecham
e não me fazem sair do lugar.
Tudo passa, segue seu movimento
linear e uniforme.
Já eu sou um ponto que não se move.
Só eu que permaneço sentado,
num banco,
ou numa janela debruçado.


Essa é a minha metáfora.