sábado, 25 de maio de 2013

do Inverno ao Verão.



            Nessa gelada noite de inverno, desenrolo-me do cachecol,
desfaço os nós.
Do cobertor me retiro, descubro-me aos poucos.
Lá fora os ventos sopram meus sonhos
Cá dentro meu lar desconstrói paredes.
Talvez isso seja eu, um cigarro mal tragado,
Jogado aos restos,
a rolar na rua,
esperando outra boca e outro pulmão.
Esperando não, pois o trafego da existência não permite pausas,
Sinal vermelho.
Nas ruas visito-me:
Os teatros fechados, as cenas
já não mais encenadas, encerradas.
As ideias paralíticas, não feitas, não ditas
Os beijos dentro do cinema demolido.
O devaneio infantil agora civilizado.
Na rua e só na rua,
Onde a lua me alumia
É que vagueia a vida
Em um riacho de lembranças minhas.
De ontem pra cá, dispo-me de fatos e calças,
de falas e casos,
de miragens e presságios.
Dos escombros
das memórias sobre os ombros de quem lembra.
Encontro meu lar no ar
no tempo do vento. Fora me vejo por dentro.
Porque a rua me diz, me lê
e passeia sobre minha estada.
Pontes, vielas e mares.
Tudo na mesma rua, esse rio
que navega dentro de mim, que jamais seca,
que jamais para, que jamais retorna,
porque é impossível entrar duas vezes no mesmo rio
e é impossível passear duas vezes
pelas mesmas vielas
do passado.
Lembrar é seguir as memórias por-vir
Que virão e verão.

domingo, 19 de maio de 2013

Histórias de livros e pesca.

Um peixe de papel.

Numa casa chamada Mar moravam o pescador Vargas e sua companheira, a rendeira Dona Candinha. Dois personagens muito simpáticos e conhecidos entre os nativos da praia da vila. Seu Vargas era homem de poucas palavras e longos olhares. Entre os mais novos e mais levados - as crianças de pés descalços e pele suja de experiências menores - o pescador era conhecido como “O estrangeiro”. Apesar de ter nascido com os pés na areia da praia e com o perfume da maresia local, de ouvido em ouvido, passeava a estória de que Vargas ainda não havia nascido, ainda não havia dado partida na corrida chamada vida, o que justificava o olhar longo, quase livre, infantil. Olhar curioso, de quem desconhece o mundo, pelo menos este mundo que se diz de todo mundo. Por isso o pescador não era humano, não era brasileiro, catarinense e nem imbitubense, era o estrangeiro. Era um feto de 55 anos. Dona Candinha, por sua vez, desaprendeu as palavras. A língua portuguesa pôs suas classes de palavras, sua morfologia, sua sintaxe, numa velha mala abarrotada e abandonou a identidade da mulher rendeira. Alguns diziam que era culpa do estrangeirismo do marido, a língua não se fez entender e partiu, outros, porém, diziam que a banguelisse da pobre, que não tinha um dente sequer na boca, nem branco nem preto, a impedia de articular os sentidos do mundo. Tudo estória de povo que não sabe o que fazer no domingo, Dona Candinha aprendeu a língua do mar, interagia por ondas, ora agitada, ora mansa, maré baixa e alta.
A mar, casa de seu Vargas e Dona Candinha, não tinha porta, somente janelas. Candinha reclamava, praguejava a teimosia do velho, pois não tinha mais força nem resistência para ficar pulando janelas. Pular janela para estender a roupa no varal, para colher o butiá do pé. Uma mulher de 53 anos, como pode isso! Mas o pescador desconversava, falava que era para o bem do casal. Ele olhava em direção ao mar e visitava as ilhas perdidas e as profundezas indecifráveis a olho de gente, e assim reiniciava a velha estória. O meu tataravô que construiu essa cidade, e não em sete dias, somente em dois. Está vendo essas estrelas? Ele que ascendeu esse céu, e não em um estalo, mas num piscar de olhos. Com uma velha enxada extraiu passados e ervas daninha, cultivou toda essa terra, esse chão de onde brotaria toda essa gente. O mar era sua casa, por isso essa casa tem esse nome, o velho Vasconcelos era como um peixe, seu lar era o mar. Não usava tarrafa para pescar, os peixes entregavam-se a ele, numa espécie de agradecimento das águas salgadas. Era o homem mais forte do mundo, alguns afirmavam que o velho era imortal, que tinha poderes sobrenaturais. Mas um dia, e para tudo tem um belo dia, por forças malignas, a mando do coisa ruim, um monstro rasteiro e gosmento, vindo direto do inferno marinho entrou na casa Mar com um propósito das trevas. O monstro passou por baixo da porta e comeu o velho Vasconcelos, comeu o pescador imortal e levou para o fundo do mar. O estrangeiro contava essa estória como se o monstro também tivesse comido uma parte dele próprio. “Então mulher, se o monstro comeu meu imortal tataravô, imagina a nós, dois miseráveis nutridos somente de peixe”. Depois da morte do tataravô as portas foram tiradas por segurança, se não há porta não há monstros que entrem por baixo da porta. As janelas são nossas entradas e saídas! Assim, jamais um monstro voltou a entrar por baixo da porta.
A mulher xingava em silêncio, mas no fundo ria, sabia que a crença move montanhas. Uma crença ingênua e verdadeira, essas sim constroem mundos fantásticos e divinos.
Seu Vargas e Dona Candinha, quem quiser conhecê-los que se desloque até Imbituba, numa casinha de madeira, pequena e sem portas, lá entre a comunidade do araçá e o hotel amarelo, numa rua de barro, cercada de restinga, a cem metros da água molhada. Esse é o pedacinho de mundo do casal. Sua nação, nunca pisaram em outro chão. Entre o mar e a mar é que os dois vivem, entre a casa, o horizonte e tudo que há no horizonte. E prestem atenção, pois o casal, de tão íntimos do lugar, costumam se camuflar na natureza. Transformam-se em restinga, em areia, em mar, em noite, em dia, em praia, em sóis, em vento...
A mulher trançava o tempo e o destino em suas linhas de tricô. Era o mesmo ponto cruz, passado, presente e futuro, na repetição dos movimentos diários. E Seu Vargas gostava da vida desenhada assim, sentado na cadeira de balanço a olhar sua companheira entrelaçando o tempo com duas agulhas e a olhar o mar, logo fora da janela, a repetir seu incansável ritual de doação de ondas. E tudo era lindo, perfeito, como tinha de ser e assim era. Algumas vezes o pescador desfazia os pontos do tricô da vida, misturava as linhas, bagunçava e enosava as lembranças, somente para ver dona Candinha recontá-los. Os dois revisitavam o passado, matavam a saudade, porque tudo o que se repete nunca é igual.
Certo tempo ela fez uma casaco para o seu pescador, de tão bonito e de tão cheio de carícias, seu Vargas jamais pôs em seu corpo, mas diariamente, quando Dona Candinha estava ocupada nos afazeres da casa ou consertando os peixes na cozinha, seu Vargas ia até o guarda roupa e se aconchegava entre as linhas da esposa que era para sentir o abraço dela. Porque abraço não é questão de braço.
E assim a vida segue, conhecendo ou não o simpático casal imbitubense, sabendo ou não o motivo das lágrimas de quem dorme só à noite. E a vida se divide entre coisas sabidas e coisas não sabidas e as coisas são sempre tão poucas. Só os peixes, na casa mar, que não eram poucos, eram infinitos.
E toda manhã, homens, mulheres, crianças descalçadas e até mesmo cachorros, iam até a casa Mar e se enfileiravam na janela. É que a noção de casa para o casal transgredia o sentido de abrigo e propriedade. A mar era de todos, porque não era de ninguém, nada poderia ser de alguém. Era Dona Candinha que organizava a partilha dos peixes. Todos diziam que o mar, na madrugada, se estendia até a casa Mar, e nessa ponte de águas, como uma mão que se estende, os peixes se entregavam aos sonhos de Seu Vargas. Nesse ritual, respeitosamente, o pescador agradecia a oferenda marinha e enchia o seu gongá. Quando a madrugada se cansava de assustar as crianças medrosas e a luz aos poucos se aprochegava ao litoral imbitubense era hora da partilha. Porque cada um tem o seu pisar no mundo, e isso é tudo. O casal desconhecia os saberes básicos da vida social e gramatical, desconheciam os pronomes possessivos, não existia Meu, Teu, Seu. Só sabiam o Nosso e não havia fronteiras de sentido para o nosso. Os donos de mercado reclamavam, em vão tentavam explicar o capital, o valor do dinheiro, as relações de troca, de trabalho, de poder, mas de nada adiantava. Dinheiro nunca entrou na casa Mar.
Assim, de manhã em manhã, o sol e os imbitubenses, ainda remelentos, iam receber sua parte de mar. A porção que o mundo tinha para lhe dar.
Numa manhã, Nino, filho único do falecido Maneca, como de costume, foi até a Mar, a fim de pegar uns pequenos carapicus para um fritado no almoço. Pirão de feijão com carapicu, seu almoço preferido. Em Imbituba as pessoas tinham esse curioso costume de serem felizes com o que tinham. Mas as manhãs são coloridas com pigmentos distintos, assim como os dias. Os dias são dias, mas alguns são mais dias do que outros. Aquela era uma manhã de cor especial. Fritado não teve no prato. O pequeno Nino, com as lombrigas tocando maracatu no estômago para manifestarem sua fome, não ganhou peixo nenhum. Nem carapicu, nem sardinha, nem peixe rei. Debruçou-se na janela e tirou os pezinhos do chão, como sempre fazia. Quero peixe seu Vargas, a mãe já está fazendo o feijão. Seu Vargas, como quem não tivesse entendido o pedido do menino, permaneceu parado, refletia com uma sacola na mão, olhava-a, encarava-a. Após um minuto o menino recebera a sacola, deveria ser os peixes. Seu Vargas nada disse, parecia estar confuso, contrariado, sem saber o que fazer. Ele que era o escolhido pelo mar, ele que falava a língua dos peixes, ele que repetia diariamente a partilha dos peixes, parecia um pescador de primeira viagem. E assim o estrangeiro permaneceu o resto do dia, mais calado do que o silêncio. Ficou com uma interrogação nas rugas da testa.
Em casa Nino levou três tapas na orelha. O que é isso menino? Cadê os peixes? Nem pra isso tu serve, será possível? O que é que essa sacola com esse livro dentro? Fique aí olhando o feijão que eu mesma vou lá na casa Mar.
O menino agora tinha a mesma impressão facial do velho Vargas, um mistério marinho inundou seu pequeno corpo.
Por que o estrangeiro me deu uma sacola com esse livro dentro? E com dificuldade Nino leu o título do livro que segurava em mãos: Ro-bin-son-Cru-so-é.