sábado, 1 de junho de 2013

Tudo é peixe, tudo é poesia.

Histórias de pesca e livros.
2 - Tudo é peixe, tudo é poesia.

Dona Candinha estendeu os peixes para secar. Assim era o ritual, cada peixe tinha o seu lugar ao sol, tinha o seu direito de ser outro. E antes de morrer os escamosos se transformavam em lagartos e lagarteavam no insonso sol da manhã. Com o gongá cheio pela generosidade marinha, aquela seria mais uma manhã de doações e peixe frito no prato. Com esforço repetido a rendeira arrastava o gongá até a grande pedra e, um por um, carinhosamente, cada um por seu nome, os deitava na concretude cinzenta, com a calda em direção o sol que era para não cegar os olhos. A pedra que nada fazia da vida ganhou também sua função. Toda manhã ela tinha o dever de segurar os peixes que, coitados, por força da natureza, não sabiam sentar. Na casa Mar era assim, todos trabalhavam. Logo começou o desfile, Carapicu, peixe rei, sardinha, tainha...escamoso, escamoso, escamoso. Num desses movimentos de botar o dentro para fora, a mão já enrugada, mas que tudo via, de Dona Candinha, não encontrou um escamoso. Seria o corpo de mais uma árvore que se afogou no mar? Não, não era. Rabo não tinha, nem olho e boca. Não dançava, como os demais peixes, e suas escamas eram do tamanho do corpinho. Eram escamas ou bocas? Pareciam bocas, um bichano com centenas de bocas, porém sem dentes, mas que certamente sabiam falar, que pronunciavam sentidos. Era um peixe gordo e fino, maior do que a sardinha e menor do que a tainha. Retangular e feio.
           O sol e a Dona Candinha ficaram assim, observando aquele peixe estranho. E quanto mais o sol se aproximava, mais a mulher desconhecia o que via. Desconhecia as letras, o papel, as folhas, as páginas, os parágrafos.

        -      Vargas, venha cá. Olhe isto! O que que é? É peixe?

Seu Vargas não sabia ler e escrever, sua calejada e pescadora mão jamais segurou um lápis e desenhou um coração ou traçou a letra A. Caderno nunca viu. A escola do pescador era o mar e o professor era a tarrafa. Desconhecia a sintaxe da língua portuguesa, mas sabia a língua dos peixes do mar, sabia a língua do dia e a língua da noite. A noite fala baixinho, igual o silêncio. E sabia que aquele retângulo não falava a língua do mar e nem cheirava o gosto da maresia. Mas depois de mais de mil visitas no sonho do pescador o mar jamais tinha deixado e ofertado tal estranheza. Estranheza que deixou o casal engalfinhado, se de letras eles não entendiam, de mar e de peixe eles sabiam tudo e um tanto mais, menos aquele peixe retangular.
             Para seu Vargas o mundo se resumia em o que era peixe e o que comia peixe. Por exemplo: O filho da Noca e do Neco comia peixe, então o menino não era peixe. A mesa central da casa Mar não comia peixe, então o móvel era um peixe com quatro patas. Os pardais eram peixes de asas e os cachorros eram peixes que não sabiam nadar. As formigas eram um peixe esfarelado. A saudade era um peixe que por vezes se perdia da correnteza marinha e voltava a bater em nossa porta. Assim como o passado, que às vezes se perde da linearidade temporal e volta a bater no nosso coração, sempre vestido de saudade. A lembrança, a fome, o cansaço, tudo era peixe. Assim era a escola de seu Vargas. 

  -    E o que faço? Boto na pedra para secar com os outros peixes ou não?
Os peixes lagartos que ali repousavam entreolharam-se e disseram que não conheciam tal escamoso e que era para lagartea-lo em outro lugar.
Dona Candinha, que entendia a língua dos peixes, levou o retângulo pra cozinha.

            - Esse não vai ser doado Vargas, esse será o nosso almoço.
            - Não mulher, esse peixe é de conhecimento do menino Nino, ele há de saber como fazer esse fritado. Todo dia, final da tarde, vejo Nino ir pra casa segurando uns dois peixes, tão estranhos quanto esse aí. Deixa, hoje, quando ele vier buscar os carapicus, entrego esse escamoso sem escama.
 
Seu Vargas pegou o livro com carinho, como quem pega um recém-nascido nas mãos. Olhava-o com estranheza, mas encantamento. Como um morcego que assisti o nascer do sol, ninguém sabe, mas o morcego sempre se emociona à luz solar. As mãos que tinham o dom de segurar a água do mar, pela primeira vez na vida, apalpavam um livro. Mal sabia o pescador que seria devorado pelas estórias, tempos, lugares e vidas que o escamoso desconhecido tinha para lhe contar. O mar, traiçoeiro como é, nos sonhos mais ingênuos de seu Vargas, presenteou-o com um livro. Porque em Imbituba, tudo é passivo de mar.