Abel era um homem
melancólico, de olhos melancólicos, barba melancólica e trajes
pretos melancólicos. O andar, também melancólico, imitava a
estrutura arcada de um guarda-chuva, inclinado para si. Beatriz dizia
que era culpa da poesia, o pai passava os dias na biblioteca de casa,
mergulhado nos livros empoeirados. Com os anos já não era possível
ficar em posição ereta.
Na triste manhã de 14 de
junho de 1986, na saída do velório de sua esposa, esta foi a visão
que impressionou Julio Borges: os olhos lacrimejosos de Abel, que
guardavam uma solidão sólida e soberana, como a infinitude dos
oceanos. Sobre a cabeça do velho enigmático, o guarda-chuva imitava
seu corpo, como se um fizesse companhia para o outro. No portão do
cemitério os dois se abraçaram, sogro e genro. Com a troca de calor
complacente ambos compreenderam a própria dor, por meio da dor do
outro. Deram-se as costas e cada um, seguindo seu caminho, carregou
consigo a fadiga da perda e o vazio da solidão. Em suas cabeças,
filmes foram projetado em tela de cinema: Beatriz acordando, Beatriz
comendo, sua voz com gosto de primavera e seu cabelo com cheiro de
jasmim. Um a recordar da filha, outro a relembrar da esposa. Na porta
de casa Borges desejou que o abraço de despedida durasse mais tempo.
Em 1987, uma semana antes
do aniversário de um ano da morte de Beatriz, Julio B. voltou a
recordar de sua ex-esposa como se ela estivesse ido ao mercado e logo
voltaria com os legumes frescos. Ou como se estivesse na casa do pai,
ouvindo o velho ler poesia, sentada em seu colo, como sempre fazia.
Lembrava até mesmo de Luis Jorge, o filho que um dia sonharam ter.
No devaneio da madrugada e pelo implacável passado que entrava pela
fresta da janela, J. Borges decidiu visitar o sogro e a antiga casa
em que Beatriz morou quando criança. Só o velho Abel saberia
brindar com devida dor a taça de vinho que sua amada merecia para
comemorar essa data.
Porém, a sensação de rever o sogro preenchia o sono de Julio
Borges de pura cólera, com repentinos calafrios que faziam seu corpo
suar. Por dois dias não foi ao trabalho, a febre não o deixou sair
da cama.
Borges e Abel nunca estabeleceram uma relação amistosa ou
diplomática. Apesar das tentativas frustradas de Beatriz para
aproximar pai e marido, os dois mantinham o silêncio, como se nada
tivessem para falar, para contribuir, para trocar. Um não agia sobre
o outro, eram forças opostas, universos paralelos.
Abel, apesar de cultivar o costume do silêncio, num certo dia,
confessou a filha que a presença de J. Borges o incomodava
profundamente, era como se o genro o encarasse a todo momento, como
se roubasse seu espaço no mundo e seu ar para respirar.
Apesar das diferenças os dois compartilhavam duas coisas: o amor
por Beatriz e a solidão crônica.
Mas o encontro aconteceu, Borges ligou para Abel e tremeu ao
escutar a voz rude do sogro pelo telefone.
Como combinado e exatamente no horário programado, J. Borges, às
20h, tocou a campainha da imensa casa da rua Aleph. Na mão, segurava
O retrato de Dorian Gray.
Abel abriu a porta com um
sorriso cortês, mas forçado. A musculatura de sua face já não
sabia articular os movimentos precisos para um sorriso. Ao olhar o
jovem em sua frente, percebeu que o pobre homem envelheceu uma década
em apenas um ano.
Este livro é para você, sei que gostas de ler.
Sim, muito! Uhm, Oscar Wilde, interessante
Um clássico.
Sim, você já leu?
Não.
Então fique, tenho todos dele. Wilde teve uma vida extravagante
e muitos amantes.
A porta fechou-se e os
dois entraram. A casa parecia estar desabitada, com uma aparência
fantasmagórica e abandonada. O próprio Abel parecia estar
desabitado. O velho seguiu na frente, com andar pesado e lento, sem
pronunciar uma única palavra. Vestia preto e sua barba ruiva
iluminava a escuridão da casa, como a lamparina na parede. Seguiram
até a biblioteca, por minutos, que para Borges, pareceram durar a
eternidade, já não sabia se teria sido uma boa ideia o encontro.
Café era a única bebida
que tinha na casa. Tomar café era como beber o véu negro da morte e
saborear a mentira da eternidade. Na biblioteca, cada um com sua
xícara, os dois sentaram-se em mesas diferentes e desenrolaram
confissões sobre Beatriz, esvaziaram-se de toda palavra acumulada
durante o ano. Falavam como quem fala para si mesmo, num processo
terapêutico que perdurou duas horas.
Sabe,
todos esses livros que aqui estão, todas essas estórias e
devaneios. Falam de tudo muito bem, amor, natureza, ódio, doença.
Só da morte que não, tudo não passa de suposição imagética,
delírio, por isso, a morte, é a única experiência verdadeira, é
o maior êxtase da literatura.
Após
a quinta xícara de café, Borges decidiu ir embora, eram dez horas
da noite, mas não tinha noção do horário. O tempo, ali, não
seguia uma linearidade, era como uma espiral, independente da
cronologia. Com Oscar
Wilde embaixo
do braço, com um aroma de café na boca e com um alívio no coração,
Julio B, voltou para seu apartamento. Na cama, não soube saber se
não conseguiu dormir devido as xícaras de café ou devido a luz da
barba ruiva que ainda iluminava seus olhos. Ainda na biblioteca, Abel
dormiu com Oscar
Wilde.
Tanto
em 1948 quanto em 1949, as visitas anuais seguiram. No dia 14 de
junho as portas da mansão da rua Aleph
escancarava-se
para o único visitante que ali entrava. Motivadas pela morte e pelo
café, as conversas, sempre tematizando Beatriz, se davam com tamanha
intimidade e naturalidade que os dois pareciam estabelecer uma
relação respeitosa de pai e filho. Nessas visitas já não sentavam
em mesas diferentes e já conseguiam se olhar nos olhos. Abel não
sabia explicar ou entender o porque da expectativa excitante que o
dominava em todo início de junho.
Em
1950 Borges tocou a campainha mais cedo, na mão, uma garrafa de
vinho e na face uma juventude que desabrochava após a eliminação
de ervas daninha. Uma voz bradou de dentro da casa, a visita
obedeceu a ordem e entrou.
Abel
procurou na biblioteca, mas nada encontrou.
Estou
na cozinha, ao lado da sala principal.
Era
a primeira vez em que Borges pisava sobre um caminho que não o levava
até a biblioteca. Na cozinha, Abel, com um sorriso no rosto, vestia
um avental sujo de sangue e segurava uma faca na mão. Um calafrio de
medo percorreu a espinha dorsal de Borges, como quem visse um
assassino.
Estou
preparando o prato preferido de Beatriz. Todo ano, em seu
aniversário, nós preparávamos esse banquete e comíamos na varanda
da casa, no terceiro andar. Espero que gostes de carne de javali.
Ainda
se recuperando do susto, Julio B. serviu em duas taças de cristal o
vinho preferido de Beatriz. A casa já não parecia assombrada. Era
bem arejada e exalava um aroma de livro novo ou tinta fresca, como
uma arte prestes a ser criada. Abel já não estava desabitado,
possuía um espírito virtuoso, um sorriso cordial e uma voz mansa e
sábia.
Jantaram
na varanda da casa, sob uma lua cheia. Conversaram sobre arte,
política, sentimentos, sobre a existência humana e a complexidade da
vida. Por um tempo, esqueceram-se de Beatriz.
Abel
assustou-se ao ver o relógio, os ponteiros, silenciosos, marcavam as
duas primeiras horas da madrugada, lá fora, iniciava uma chuva
sonolenta. Após a quinta taça de vinho o visitante decidiu aceitar
o convite do anfitrião de dormir em um dos quartos vagos da casa.
Borges já havia bebido demais para dirigir.
Na
manhã seguinte, os dois amanheceram diferentes, como se o sol do dia
queimasse com um fogo mais vivo e um vermelho mais quente.
É
certo que durante o ano de 1951 os dois pensaram em se ver durante
outras datas, reveillon, páscoa, ou um domingo qualquer, mas
mantiveram o ritual do 14 de junho, mais por medo do que por desejo.
E assim mantiveram até 1958, quando o inevitável aconteceu.
Borges
chegou no horário do almoço, como estava acostumado a fazer. Foi
até a cozinha, até a sala de estar, até a varanda do terceiro
andar, mas não encontrou Abel. O velho, com cerca de 65 anos, estava
sentado em sua poltrona na biblioteca, lia com uma concentração
espantosa, como quem meditasse, como se livro e leitor fossem a mesma
coisa. O olhar decidido do velho revelava com uma sanidade
assustadora o que Borges temia ver durante todos esses últimos anos.
Entre.
Este livro era o preferido de Beatriz. Não havia uma vez que nos
víamos em que eu não lia pelo menos um parágrafo dessas palavras.
Fui presenteado com essa obra prima literária ainda muito jovem, por
um padre extremamente sábio durante meio tempo de seminário. Ele me
aconselhou a ler esse livro para as pessoas que eu amasse
verdadeiramente. E assim fiz, até hoje só li para Beatriz.
Que
bonito! Qual o nome do livro, qual o seu autor?
Não
tem título, nem autor.
Depois
de uma longa pausa, para que o silêncio fermentasse a palavra
seguinte, Abel, olhando fixamente para Borges, disse-lhe.
Julio
Borges, meu querido, hoje, o que eu mais desejo é ler e reler esse
livro para você. Como eu fazia com Beatriz. E o motivo é apenas um,
eu te amo verdadeiramente.
Borges
não se surpreendeu com o que ouviu, parecia já ter previsto tais
palavras. Caminhou lentamente até Abel e sentou-se no colo do homem,
como Beatriz sempre fazia. O velho sorriu e iniciou a leitura. O
livro não tinha estória, nem páginas, nem palavras, nem início,
nem fim. Era como A
biblioteca de Babel,
de
Jorge Luis Borges.
A
partir desse dia Julio. B passou a morar na mansão da rua Aleph
e
a dormir na mesma cama onde a vida de Beatriz foi concebida.
Na
verdade, os dois compartilhavam apenas uma coisa: o amor recíproco.