domingo, 23 de novembro de 2014

A anunciação de todos os dias.

             O dia estava no seu fim, e Ana também.
            Entrou esbarrando nas pessoas, ouvindo e recebendo xingamentos, dando e levando empurrões. O mundo selvagem não lhe dava folga nem dentro do ônibus, na volta do trabalho. Ana sobrevivia como podia, apesar de quase nada poder e morria mais do que vivia. Conseguiu chegar ao fundo do ônibus e lançou seu corpo passivo na poltrona, como se fosse uma carne de açougue, já longe de um ser e de uma alma.
            Esse era o único momento do dia em que Ana podia pensar. Durante o dia ela trabalhava no restaurante e à noite ela cuidava dos filhos. A viagem de ônibus era um ritual de passagem, em que Ana não sabia se mergulhava em seu íntimo ou se fugia do que era ela.
            Estirou-se na poltrona como se fosse uma rainha. Descalçou os chinelos e subiu o vestido na altura da coxa, pensando ter vinte anos. A sacola da feira estava no chão. Um repolho de pele enrugada e feia, berinjelas caídas próximas ao umbigo e jabuticabas sem cor, de olhar nulo. Na mão segurava um pepino que não formaria o jantar, nem o almoço. Era apenas um objeto fálico que Ana alimentava, no ônibus, seu outro apetite.
            Ana sabia que era invisível, por isso ousava em suas atitudes durante a viagem. Encarava todos os homens dentro do ônibus e inalava o cheiro de cada um, distinguia-os entre os que trabalhavam carregando coisas na rua e os que ficavam dentro de escritórios. Mas todos poderiam ser seu pepino. Ana preferia os homens em pé, assim poderia analisá-los dos pés a cabeça. Excitava-se com aqueles de braços levantados e musculosos, com um pedaço da barriga à mostra e uma imensidão de prazer. Nesses momentos Ana experimentava movimentos acrobáticos com seu objeto. Ela queria jogar seu corpo apático e passível, sem energia alguma, no colo de algum daqueles distintos personagens que enfeitavam sua viagem. Ela subia ainda mais o vestido e imaginava todos os homens entrando ali, até o motorista e o cobrador. As pernas abertas para a visita entrar. O ônibus pararia e eles ficariam ali para sempre, sem emprego e sem filhos, era o que Ana pensava.
            Mas logo o pepino caía, murchava, e o vestido voltava a encontrar os pés.
            O cansaço fazia Ana pensar em lamentações. Não sabia por que trabalhava tanto, por que o filho ainda não aprendera a ler, por que o marido não havia voltado para casa depois de três anos. Pensava na sua condenação, na vida que carregava - e como era pesada. Nesses momentos lembrava-se de Maria, a mãe do menino Jesus. Maria também sofreu. Ela deveria ser feliz, deveria cantar e dançar com José, ir ao parque, comer sorvete de creme e namorar de mãos dadas. Naquele tempo não havia trânsito, nem ônibus lotado de gente cansada, tudo era mais fácil. Mas o arcanjo Gabriel entrou pela janela com suas asas de pássaro silvestre e lhe anunciou a vinda de Cristo. Maria estava sentada e quando levantou já carregava a vida crucificada na barriga. Ana carregava nas costas, como se fosse uma punhalada não avisada e não um presente divino. Ana não teve anunciação nenhuma e não entendia o seu carma. Carregava um castigo e não uma salvação. E se Maria tivesse dito não ao arcanjo Gabriel? Sem dúvidas sua vida poderia ser mais leve e seu pepino mais saboroso.
            Ana olhava para a janela do ônibus e não via nenhum arcanjo. Ana olhava para o céu e não enxergava nenhuma esperança. Pensava em seus filhos em casa. Coitados! Teriam também o mesmo destino do filho de Maria?

            O final da viagem chegaria e Ana desceria do ônibus cambaleante, o cachorro da vizinha latiria incessantemente, como fazia todas as noites. Os filhos a aguardariam ao redor da mesa e os três seres esquecidos jantariam juntos, sem conversarem sobre o dia, que tentavam esquecer. No dia seguinte Ana sairia para trabalhar e não se despediria dos filhos, que ainda dormiam. O cachorro latiria e a porta do ônibus se abriria para mais um desafio, como fazia todos os dias. O sol também nasceria, lindo, quente, brilhante e único, mas Ana, mais uma vez, não o veria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário