O dia estava no seu fim, e Ana também.
Entrou
esbarrando nas pessoas, ouvindo e recebendo xingamentos, dando e levando
empurrões. O mundo selvagem não lhe dava folga nem dentro do ônibus, na volta
do trabalho. Ana sobrevivia como podia, apesar de quase nada poder e morria
mais do que vivia. Conseguiu chegar ao fundo do ônibus e lançou seu corpo
passivo na poltrona, como se fosse uma carne de açougue, já longe de um ser e
de uma alma.
Esse
era o único momento do dia em que Ana podia pensar. Durante o dia ela
trabalhava no restaurante e à noite ela cuidava dos filhos. A viagem de ônibus
era um ritual de passagem, em que Ana não sabia se mergulhava em seu íntimo ou
se fugia do que era ela.
Estirou-se
na poltrona como se fosse uma rainha. Descalçou os chinelos e subiu o vestido
na altura da coxa, pensando ter vinte anos. A sacola da feira estava no chão.
Um repolho de pele enrugada e feia, berinjelas caídas próximas ao umbigo e jabuticabas
sem cor, de olhar nulo. Na mão segurava um pepino que não formaria o jantar,
nem o almoço. Era apenas um objeto fálico que Ana alimentava, no ônibus, seu
outro apetite.
Ana
sabia que era invisível, por isso ousava em suas atitudes durante a viagem.
Encarava todos os homens dentro do ônibus e inalava o cheiro de cada um,
distinguia-os entre os que trabalhavam carregando coisas na rua e os que
ficavam dentro de escritórios. Mas todos poderiam ser seu pepino. Ana preferia
os homens em pé, assim poderia analisá-los dos pés a cabeça. Excitava-se com
aqueles de braços levantados e musculosos, com um pedaço da barriga à mostra e
uma imensidão de prazer. Nesses momentos Ana experimentava movimentos
acrobáticos com seu objeto. Ela queria jogar seu corpo apático e passível, sem
energia alguma, no colo de algum daqueles distintos personagens que enfeitavam
sua viagem. Ela subia ainda mais o vestido e imaginava todos os homens entrando
ali, até o motorista e o cobrador. As pernas abertas para a visita entrar. O
ônibus pararia e eles ficariam ali para sempre, sem emprego e sem filhos, era o
que Ana pensava.
Mas
logo o pepino caía, murchava, e o vestido voltava a encontrar os pés.
O
cansaço fazia Ana pensar em lamentações. Não sabia por que trabalhava tanto,
por que o filho ainda não aprendera a ler, por que o marido não havia voltado
para casa depois de três anos. Pensava na sua condenação, na vida que carregava
- e como era pesada. Nesses momentos lembrava-se de Maria, a mãe do menino
Jesus. Maria também sofreu. Ela deveria ser feliz, deveria cantar e dançar com
José, ir ao parque, comer sorvete de creme e namorar de mãos dadas. Naquele
tempo não havia trânsito, nem ônibus lotado de gente cansada, tudo era mais
fácil. Mas o arcanjo Gabriel entrou pela janela com suas asas de pássaro
silvestre e lhe anunciou a vinda de Cristo. Maria estava sentada e quando
levantou já carregava a vida crucificada na barriga. Ana carregava nas costas,
como se fosse uma punhalada não avisada e não um presente divino. Ana não teve
anunciação nenhuma e não entendia o seu carma. Carregava um castigo e não uma
salvação. E se Maria tivesse dito não ao arcanjo Gabriel? Sem dúvidas sua vida
poderia ser mais leve e seu pepino mais saboroso.
Ana
olhava para a janela do ônibus e não via nenhum arcanjo. Ana olhava para o céu
e não enxergava nenhuma esperança. Pensava em seus filhos em casa. Coitados! Teriam
também o mesmo destino do filho de Maria?
O
final da viagem chegaria e Ana desceria do ônibus cambaleante, o cachorro da
vizinha latiria incessantemente, como fazia todas as noites. Os filhos a aguardariam
ao redor da mesa e os três seres esquecidos jantariam juntos, sem conversarem
sobre o dia, que tentavam esquecer. No dia seguinte Ana sairia para trabalhar e
não se despediria dos filhos, que ainda dormiam. O cachorro latiria e a porta
do ônibus se abriria para mais um desafio, como fazia todos os dias. O sol
também nasceria, lindo, quente, brilhante e único, mas Ana, mais uma vez, não o
veria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário