terça-feira, 22 de julho de 2014

A estrada


           Hoje completa 17 anos que não vejo minha mãe. Nesse período já almocei com ela, é verdade. Também dormimos sob o mesmo teto. Festejamos natais e finais de ano. Mas por mais que se renovasse o ano e que a década mudasse, era impossível vê-la e senti-la novamente. Meus olhos desaprenderam a enxergar minha mãe. Já não podia encará-la. Aqueles cabelos castanhos, o rosto não tão juvenil, os longos dedos dos pés, como os meus, não mais constituíam minha mãe. Sua subjetividade transfigurou-se. Aquela que eu conhecia morreu e esta eu ignoro, como se entre nós existisse quilômetros de distância e décadas de anos, um muro intransponível.
            Estar ao seu lado é voltar a minha infância, retornar ao sítio dos meus avós, na desastrosa tarde de 21 de julho de 1954.
            Era férias da escola e, como todos os anos da minha infância até então, visitávamos nossos avós no interior do estado. Toda a família: Eu, meu irmão Victor e meus pais. Eu adorava a mudança de paisagem, de repente o cinza claustrofóbico dava lugar a um verde longínquo e suave. Adorava também os animais. Correr atrás das galinhas, dar lavagem aos porcos, passear com o Tio Bento a cavalo, guiar todo um grupo de ovelhas. Amava o bolo de milho da vó, assim como o queijo colonial e o leite fresco da vaca. Amava as histórias que meu avô contava. Eu subia em árvores, comia frutos do pé sentado nos galhos e, lá de cima, observava o mundo. Tudo parecia perfeito. Assim como eu adorava tudo, tudo e todos também me adoravam. Eu era o filho engraçado, inteligente, educado e trabalhador. Uma criança abençoada, como minha avó dizia.
            Victor não, meu irmão não gostava do sítio, nem dos animais, nem das comilanças do café da tarde, muito menos dos abraços apertados da vó. Sempre se trancava no quarto e seu lugar ao redor da fogueira, para as histórias do vô, sempre estava vago. Na cidade Victor também nada amava. Odiava a escola, fugia das aulas, brigava com os colegas. Zombava dos professores e de qualquer regra.
            Victor era dois anos mais velho do que eu. Ele tinha 14 e eu 12 na tarde desastrosa. Nossa relação era boa, quando ele brigava com meu pai e minha mãe ficávamos no quarto conversando. Ele me contava suas histórias com cigarros, meninas e festas, lugares desconhecidos na minha infância ingênua e cristã. Ele era filho da rua, eu era filho da mamãe.
            Na tarde do dia 21 eu estava brincando com a vaca berlinda que pastava perto da casa principal do sítio, a cerca de 20 metros. Apenas uma estrada dividia o pasto da casa. Meu pai e minha mãe estavam na cozinha, era aniversário da minha avó e logo almoçaríamos juntos. Minha mãe sabia que eu estava ali, perto da casa, perto da estrada. Victor tinha saído para fumar escondido e perambulava pelo sítio. Meu irmão tinha a habilidade de se camuflar na mata, somente eu sabia que ele fumava naquelas tardes invernais. Foi exatamente nesse momento quando tudo aconteceu, quando um céu vermelho caiu sobre nossas cabeças, quando qualquer sentido se fez desentendido e o seu valor morreu. E tudo que eu adorava perdeu o encanto. E tudo que era perfeito tornou-se insuportável.
            Eu estava dando pasto na boca da berlinda quando escutei o barulho. Primeiro um freio de carro, depois um grito e por fim um som seco de batida. Como o som do machado que atravessa a lenha. Aquele foi o som de um carro que atravessou meu irmão. Em mim também, algo me dividiu e separou-me para sempre de mim. Em poucos segundos todos nós estávamos ao redor do corpo, eu fui o primeiro a chegar e o primeiro a chorar. Com um punhado de pasto na mão pude ver minha mãe sair da casa numa corrida desesperada, ela previa alguma coisa: que eu era o motivo da freada abrupta do carro. Aqui, foi a última vez que vi minha mãe, depois jamais pude vê-la novamente. Ela saiu da casa com a mão no coração e com os olhos lacrimejantes, primeiro olhou meu irmão no chão, com a sua conhecida camisa preta do Led Zeppelin e quase irreconhecível com o pancada, depois olhou pra mim, que chorava ajoelhado e olhava-a no fundo dos olhos, buscando uma salvação para tudo aquilo. Quando viu aos dois filhos a sua frente, numa ação impulsiva, ela sorriu e agradeceu a Deus, como se algo bom tivesse ocorrido. Eu, e somente eu, pude ver o sinal da cruz que ela fez em forma de agradecimento. Minha mãe, diante de meu irmão morto no chão, agradeceu a todos os santos por aquele corpo ali desconfigurado não ser o meu corpo. Tudo isso demorou segundos, talvez dois ou três, logo depois ela voltou a se desesperar e a chorar impulsivamente pela perda inesperada do filho, pela tragédia. Todos não acreditavam no que viam, todos choravam ao redor de meu irmão. Eu permaneci parado, com o pasto na mão, sem querer acreditar no que eu tinha visto, que minha mãe sorriu ao saber que quem morreu foi meu irmão.
            Os anos se passaram, mas não consegui superar aquela imagem. Ela sabe que eu sei, ela sabe que eu vi e nada pode ser feito nem compreendido. Esse é o nosso segredo, não porque queremos guardá-lo, mas porque faltam palavras para dizê-lo. Nunca conversamos sobre o assunto, como se a pancada do automóvel ainda nos atingisse.
            Um segredo que condenou a mim e a minha mãe para o resto de nossas vidas.
            Depois daquele desastre nunca mais consegui atravessar a rua e encontrar minha mãe.

            

Nenhum comentário:

Postar um comentário