terça-feira, 31 de março de 2015

Uma passagem e um retorno.


            Eu estava correndo, nem sabia para onde. Era um compromisso na avenida Cândida, que não consegui resolver no dia anterior. Uma semana terrível aquela, pois estava resolvendo os compromissos acumulados da semana anterior.  Pior de tudo é que todos estavam com pressa. Em abril é assim, corremos atrás dos atrasos de março. É uma confusão, idas e vindas, entregas e recebimentos, apertos de mão e fechamentos de negócios. Reuniões para resolver os assuntos das próximas reuniões. Quem vai escrever as atas que nunca serão lidas? Ora, o tempo voa e ninguém volta, estamos sempre atrás de algo, nunca no lugar certo, nem na frente.
      Os compromissos são células que se multiplicam por meio de meiose, estão sempre se reproduzindo. Onde tinha um, tem quatro.
            Mas eu estava correndo e não filosofando sobre o tempo. A avenida Cândida, do número 1 ao 100, é uma subida íngreme que acumula compromissos do ano passado. Quando encontro um amigo correndo e não finjo que estou falando no celular, costumo marcar de um dia marcar de tomar um cafezinho. A rua tem 500 escritórios, de responsabilidades e gravatas variadas e reuniões distintas. Há 10 anos era um morro que as vacas do Senhor Miro pastavam, mas rapidamente, o centro urbano, que também é uma célula que se reproduz por meiose, engoliu-a. Os matos viraram asfalto e as vacas carne moída. Os muitos recém-formados em arquitetura, que se formam rapidamente, já não sabem projetar museus com estruturas torneadas, como o corpo de uma mulher. Os novos arquitetos projetam prédios para escritórios, todos com os andares iguais, repetidos, como numa reprodução por meiose. Um quadrado de vidro com várias repartições cambiáveis e dá-lhe ar-condicionado para recompor o conforto térmico. Os arquitetos artistas chamam suas obras de organismos vivos.
            Acontece que todas as horas é o mesmo rush. As pessoas correm e se chocam durante a subida e a descida. A avenida Cândida parece o mundo. Ninguém se importa com o desvio de olhar, com a não gentileza, com o “bom dia” não dito, ou o “você primeiro, por favor” deixado para depois, ou então o “com licença” substituído por um empurrãozinho. Todos se esmagam. Uma população que aprendeu a deletar o outro.
            Mas nesse dia, que eu estava na rua Cândida com os compromissos do dia anterior acumulados da semana passada, eu vi uma assombração que paralisou meu fluxo de pensamento, que freou até mesmo o sangue que corre em minhas veias. Fez-me esquecer de todas as reuniões, de todos os compromissos, fez-me soltar o nó da gravata, que me asfixiava ao caminhar e, por um minuto, parar de seguir esse caminho livre que me obrigam a seguir.
            Como voltar a viver depois daquela imagem? Aquele absurdo nu e cru sobre meus olhos. Um disparate. Uma afronta. Como voltar a correr? Aquela senhora revelou-me que não é mais andando que percebemos as algemas que nos prende, hoje, andar é a própria condenação. Subir e descer a avenida Cândida e nunca parar, eis a minha prisão.
            Era uma paisagem que negava a própria existência contemporânea. Nenhuma palavra era possível para representar o tormento que eu senti naquele momento, era como voltar da guerra e tentar socializar a experiência.
            Era uma senhora capaz de segurar água entre os dedos da mão. E estava ali, do outro lado da calçada. Enquanto subia a avenida Cândida, vi aquela senhora, que mais parecia uma célula morta, que não se reproduzia. Era uma velha de um tempo passado, que existia em outro ritmo, devagar como o horizonte. Enquanto todos corriam, ela andava. E ela não apenas andava, como se pudesse quebrar o fluxo, ela andava devagar, como se não andasse sobre uma fina camada de gelo. Ela andava com uma muleta, a contar os passos. Aquela senhora arrastava os pés, como que ciscando o chão, como se fosse uma vaca do Senhor Miro pastando no alto do morro. Ela zombava da cara de todos os corredores que deixavam suas identidades caírem do bolso.
            Quem era ela? Quem ela pensava que era para andar com todo aquele tempo nas mãos. Eu olhei uma, duas, três vezes, e ela parecia estar no mesmo lugar. Ela demorava até para respirar, demorava para coçar a testa e limpar o suor que escorria lentamente de seus ombros. Ela demorava para morrer. Ela se ancorava no muro e parava para descansar. Eu, que nunca tinha parado, observei tudo aquilo. Eu poderia dar a volta ao mundo, e a velha continuaria ali, nos seus passos de lesma, como se o mundo não fosse feito de reuniões e compromissos.
            Pensei em tirar o terno, o sapato e seguir em passos lentos e ternos. Pensei em ser como aquela senhora, que andava devagar, que olhava devagar. Pensei em viver em outro tempo, e não mais caminhar sobre esse bloco de gelo que me faz correr a todo o momento.
             Mas logo fui empurrado e arrastado pela multidão. Eu voltava a ser mais um no meio daquela rua cheia de gente e que sobra solidão. Novamente eu estava sozinho, seguindo uma direção sem lógica nem moral, como esse conto.

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