domingo, 5 de abril de 2015

Outros mesmos olhos

            João costumava debruçar-se sobre a janela e lá depositar seu tempo de criança. Gostava de ver as coisas passarem. E tudo, permeado pelo esquadro da janela, realmente passava. Passava boi, cachorro, vizinha, menino, mulher, avôs. Uns mais lentos, outros mais rápidos e assim passava também o tempo.
            Até que um dia, com os braços cansados de segurar sua própria cabeça, os olhos de João viu um homem passar, mas não era como as passadas rebolentas da farmacêutica Joana, ou como as pernadas arrastadas do jogador de dominó de fim de tarde, nem como os pulos borboleantes da menina encantadora que corria atrás do carro do picolé. A visão em questão passou de bicicleta. E João não sabia se ela voava ou se corria, se andava ou se caía. Era como se sentado, o homem pudesse dar a volta ao mundo. João ficou com perguntas atrás da orelha, era a primeira vez que João recebia uma pergunta, antes, tudo que via, só lhe mostrava respostas. O menino deixou a janela, e o homem e sua bicicleta passaram como se fossem os donos do mundo.
            Foi assim que João resolveu fechar a janela e fazer parte da paisagem.
            Correu para o lado da mãe e disse:
-        Cansei de ter olhos debruçados sobre a janela, agora terei olhos de bicicleta. Olhos que veem todos os caminhos, todas as estradas e que chegam a todos os lugares.
-        A mãe riu, como um adulto faz diante da fantasia infantil.
            Mas o menino disse sério e como alguém que coloca um par de tênis, João vestiu os olhos de bicicleta e saiu a desbravar o mundo. Passou por milhares de janelas, por diversos e desconhecidos caminhos. Viu frutos ainda não comidos, animais esquisitos e amores esquecidos.
            João até deixou a barba crescer, assim como o horizonte que sempre crescia a sua frente, o que fazia o menino sempre seguir. Um dia ainda pedalo sobre o horizonte, dizia.
            João não via mais os outros passarem, João só passava. Esse era o ponto de vista de quem tem olhos de bicicleta. Pé firme no pedal e rodas fortes pra sorte.
           Mas um dia, depois de passar por montanhas, matos, areias e pedras, o menino que nunca parava de pedalar, chegou à encosta de um rio. Era o fim do caminho para os olhos de bicicleta. João percebeu que não podia pedalar por todos os lugares e que não era possível sempre ir e chegar ao horizonte daquele ponto de vista. Era impossível pedalar sobre as águas.
       O menino entristeceu-se, sentiu-se novamente com as vistas enquadradas. Percebeu-se novamente dentro de uma janela. Assim tirou seus olhos de bicicleta e sentou-se com os pés na água. Ficou ali descansando, olhando o céu, ouvindo os pássaros e sentindo o rio passar. E o rio sempre passava.
            Foi quando João teve uma ideia, e por que não vestir os olhos do rio? O rio nunca volta, nunca é o mesmo. É certo que o rio não se repete e nunca para!
         João queria ser único, ser irrepetível. Ser a mais viajante de todas as coisas. Com esse pensamento de águas cristalinas, o menino vestiu os olhos de rio e saiu mata ciliar afora. Como quem não pudesse olhar para trás, João foi.
              Molhou quem conseguiu molhar. Conheceu as mais escuras profundezas, os mais esquecidos segredos confidenciados por pessoas que interagiam com o rio. Era comum por aquele mundo, pessoas conversarem com o rio na esperança de encontrarem respostas a boiarem sobre as águas. João conheceu peixes, plantas, polvos e povos. Mergulhou naquela aventura de ser rio. Por mais que ele quisesse permanecer mais tempo com uma criança que aprendia a nadar, com um peixe que fugia do anzol, com as lavadeiras que cantavam suas doces canções enquanto batiam com raiva as roupas brancas na pedra, João não podia, devia cumprir sua sina de sempre passar e não contrariar Heráclito.
            João finalmente estava feliz com sua natureza não concreta, de um líquido que nenhum quadrado conseguiria conter, que nenhuma mão poderia segurar. Mas sempre há um belo dia. Um dia em que o esquadro vem e nos mostra que há algo a mais para além do que nosso ponto de vista pode alcançar. Não se sabe se esse algo a mais é a realidade ou a fantasia que move nossas vidas. Mas João, que sempre quis seguir seu caminho de ida, sempre para frente, percebeu que um dia o rio cai, que o rio despenca como uma fruta madura. Logo a sua frente havia uma cachoeira e João percebeu que seu destino era a queda.
             Diante do medo, o menino não fechou os olhos. Olhou para o céu e procurou uma resposta, outro caminho possível, outro par de olhos para vestir. E enquanto caía encontrou. Vislumbrou lindas andorinhas a bailarem no céu. Voavam para todos os lados, com tamanha delicadeza e rapidez que nenhuma bicicleta e nenhum rio poderiam repetir. Para que ser rio e seguir somente para frente, se João poderia ser andorinha e voar para onde quisesse? Essa era verdadeira liberdade, alcançar os céus, voar com as nuvens e seguir em qualquer direção, aprender a dançar por todo o salão. Nesse momento João deixou seus olhos de rio caírem com a cachoeira e, como quem veste um par de luvas, vestiu os olhos de andorinha.
           Andar, pedalar, nadar, eram verbos bons, mas nada, para o menino, comparava-se com a experiência de voar. Olhar de cima para baixo, um ponto de vista que encheu os seus novos olhos de emoção. Quando sobrevoava florestas com as asas abertas, finalmente, o significado da palavra liberdade parecia decifrado. O menino com os olhos de andorinha gostava de se confundir com o vento, deixava-se ser levado como uma poeira para um destino não programado.
           O céu era um lugar livre, sem territórios demarcados, sem caminhos predestinados, sem cercas, muros, portões. Um espaço livre de estradas. No céu não existia nem dentro, nem fora, existia somente o estar. O que existia era o sol e a chuva, quando existia sinal de chuva o menino voava baixo, quando o sol iluminava as sombras esquecidas a andorinha voa alto.    
             O menino andorinhava pelo mundo com asas de liberdade. No entanto um dia o vento soprou forte, daqueles sopros que viram as folhas das árvores e dos livros, que mudam uma estória. E o menino com olhos de andorinha foi voar longe, sobre uma cidade de um céu cheio de obstáculos. Eram prédios, automóveis, antenas, barulhos estranhos, fumaças das distintas massas e cheiros tortuosos. Voar tornou-se perigoso e até tedioso. Nessa terra, até o céu parecia ter dono. O menino já não voava com as asas tão abertas e bailava com medo que pisassem em seu pé pelo salão. O menino percebeu que liberdade é também questão de lugar e existem certos lugares que não se toca música alguma.
            E num daqueles dias, chuvoso como o choro, em que voava baixo, perto das casas, dos muros, do asfalto e da vista das pessoas, João levou uma pedrada na cabeça. Primeiro pensou que do céu caíam pedras, como uma chuva sólida de água dura, mas depois viu uma criança comemorando na janela. Era uma criança que jogava pedras pela janela e festejava o tiro certeiro, a mira infalível e o poder que obtinha com sua arma de madeira e borracha na mão.
          João, que queria alcançar todos os caminhos, trilhar novos horizontes, compor inéditos destinos, explorar terra, água e céu, ser um sábio da imensidão e das coisas infindas, estava com o rosto estirado no chão. Suas asas não mais voavam e seus olhos perdiam a visão. João percebeu que o próprio homem criava armas para cercear a liberdade. Percebeu que o homem era mais talentoso em destruir a liberdade do que promovê-la. Era impossível ser livre? Nem bicicleta, nem rio, nem andorinha, todos tinham seu fim. O menino não sabia que o fim sucede todo início.
            Quando estava prestes a piscar os olhos pela última vez, quando já ensaiava o adeus definitivo, João encontrou um par de olhos esquecido ao lado da cesta de lixo. Era um par de olhos deixado para depois, negado, substituído. Um olhar de papel de bala ou casca de banana. Um olhar mundano, quebrado talvez. Devia ser um olhar torto, sujo, miúdo. O menino que estava com o rosto no chão resolveu vestir um par de olhos de chão. Era um ponto de vista de restos.
              Ao vestir tal despropósito, o menino instantaneamente reconheceu aquele olhar infantil. Era o olhar de sua infância, era o seu próprio olhar do qual já não era mais dono. O par de olhos de janela substituído pelo olhar de bicicleta. Mas nada era como antes, nem o menino, nem a janela, nem a paisagem. No início o olhar parecia não funcionar, estava enferrujado, fora de forma, de foco, mas aos poucos João foi aprendendo a ver. João percebeu que a arte de ver também é uma aprendizagem, que também é possível constituir a paisagem com o olhar, que o ponto de vista também constrói o objeto. O menino, caminhando pela rua, e vendo o mundo pela primeira vez com os seus próprios olhos compreendeu que deu a volta ao mundo não para alcançar e desbravar o mundo, mas para explorar o seu próprio ser. E João então caminhava feliz, com um olhar vagabundo, um olhar de uma alma que se encantava com a rua e com as coisas demoradas e simples dela.
            O menino percebeu que dentro de si havia uma bicicleta que dava a volta ao mundo em duas rodas, um rio que sempre passava, uma andorinha que bailava no céu, mas era preciso saber enxergá-los.
           João voltou para casa, comeu um pedaço de bolo de fubá que esfriava sobre o fogão, tomou um copo de suco de maracujá com laranja que o esperava sobre a mesa. E enquanto explorava tais experiências o menino ouviu o carro do picolé passar. Saiu correndo com o seu olhar infantil e alcançou a menina que corria com os seus pulos borboleantes. Ela, que parecia sempre esperá-lo, estendeu-lhe a mão com um sorriso afetuoso, com seu olhar encantador. Os dois, mãos e sentimentos dados, seguiram seus caminhos, seus próprios caminhos.











           
             


            

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