terça-feira, 2 de julho de 2013

O homem que sofria de página não virada.

        Ele dormia só. Só dormia e não acordava. Tobias desconhecia as datas, os dias e os anos. Os dias tendiam para serem os mesmos. E a concepção de dia dialogava com memória. A memória também era a mesma. Sim, o rio sempre corre, as águas sempre são outras, a recordação e a memória são sempre distintas porque o presente é sempre distinto. Mas Tobias tinha uma doença literária, a doença da página 138. Indubitavelmente, os textos eram os mesmos, assim o dia e a memória eram os mesmo também. Mesmo travesseiro, mesmo espelho, mesmo café da manhã. Mesmo almoço requentado de ontem. O ontem era o mesmo. Tobias não sabia se o ontem era o mesmo porque o hoje era o mesmo, ou o contrário. Acontece que a barba cresceu e as rugas racharam a face entristecida de Tobias. As orelhas cresceram, os olhos umedeceram, no entanto, o livro sobre a cabeceira e os sonhos dentro do sono, permaneciam repetidos, centoetrintaeoutamente iguais.
        Todas as noites, sempre noites de lua minguante, Tobias pegava seu livro nas mãos e chorava, o marcador – materialização do pensamento – guardava a página 138. Recomeçava a leitura, lia outros capítulos, idealizava lugares e personagens, terminava o livro, dormia. No dia seguinte o marcador voltava para a pagina 138, era assim todas as noites e todas as manhãs, o pobre sofria de página não virada. Há 20 anos que Tobias lia a mesma página, capítulo mal resolvido de sua juventude. Último dia de carnaval, último gole de cerveja, incompreensões, impulsividade, copo quebrado, amor despedaçado. No lugar de olhos, viu-se nuca. Costas dadas, caminhos opostos. O livro deveria mudar de cor, mas permaneceu na penumbra do não vivido. Acontece que o jovem não aprendera a escrever sozinho, sem perceber, palavra por palavra, frase por frase, página por página, Tobias, como quem escreve sem lápis, desescrevia-se na vida. Já não saía mais, já não carnavalizava-se. Trancou-se no quarto, na memória 138. Virou um homem imaginário, de uma vida imaginária.
       Cura diagnosticada não existia, nem para o livro, nem para a cabeça de Tobias. No início da doença o pobre homem chamou os amigos, para verificarem o defeito da página. O livro fugia, sumia da cabeceira, sumia da biblioteca, sumia das vistas de todos, menos da de Tobias. Ninguém tocou o livro imaginário. Nos olhos dos outros não havia livro nenhum, página nenhuma, recordação nenhuma. Os amigos concluíram que o problema era da cabeça de Tobias. Assim, quem sumiu foram os amigos. O doente ficou sozinho, ele e o livro.
        Teve um dia em que Tobias quis curar-se de uma vez por todas. Determinado, abriu a janela de seu apartamento, encarou a luz solar, algo que não fazia há muito tempo, e atirou o livro para o céu, com toda sua força. O livro voou. Por um breve momento o homem sentiu-se livre, nas nuvens. Mas logo se arrependeu. O problema é que a cabeça de Tobias voou junto com o livro, depois de segundos lá estava ela, no calor do asfalto, entre o trânsito dos carros, a rolar de uma lado para o outro. Perdida. Solitária. Invisível. Desesperado, correu no meio da multidão, juntou sua cabeça e retornou ao apartamento. Sentou-se na cama e sentiu-se aliviado ao ver o livro na cabeceira, aberto na página 138.
      De tanto procurar decidiu não achar mais. Sentou-se na cama do conformismo e descansou a ambição e a expectativa. Aceitou seu carma. Se Tobias tivesse amigos, nem perceberiam que o homem sofria de página não virada. A página 138 era intocável. Soberana. Não havia livros que a substituísse, quanto mais Tobias lia gêneros distintos, mais ela lhe dizia. Era página 138 antes do café da manhã, depois do almoço, durante o banho, em meio ao sono, de repente de madrugada. Ao lado da cama, em cima da pia, sobre o carpete da sala. Leu tanto que comeu todas as palavras da página. Cada olhar. Cada aroma. Todo o cenário. Todo o dito e o não dito. Todo o por-vir e toda a história. Todo som abafado. Toda ação adiada. Toda respiração alterada. Tobias aprendeu a viver com a página 138 dentro do coração, no seu devido lugar.
        Numa manhã, igual a todas as outras até então vividas, em meio a um café extra forte, sentado na cadeira da velha e fria cozinha azul bebê, o velho homem escutou um grunhido que lhe chamava da rua. Tentou tapar os ouvidos, proteger-se no seu cadeado imaginário, mas o som lhe puxava com as duas mãos e dissipou seu medo imaginário. Levantou-se, e com os ouvidos colados na porta, escutou o que lhe diziam: Tobias Tobias Tobias... Sim, a rua chamava seu nome, um som sedutor e alegre. As mãos, sem que Tobias visse, abriram a porta, e os pés, como num repentino salto, pisaram o corredor do condomínio. O som era mais forte, eram mãos grandes que empurravam Tobias. Quanto mais caminhava, mais audível o som ficava.
      Na sala de estar do apartamento 139, a velha Lurdes, vizinha do homem da página 138, e todos seus familiares, gritavam euforicamente por Tobias, o nome do mais novo integrante da família, bisneto de Lurdes, que acabara de chegar do hospital e entrar na vida. Comemoravam o nascimento.
        No corredor, o velho Tobias também nascia.
        Pode virar a página.






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