Ele
dormia só. Só dormia e não acordava. Tobias desconhecia as datas,
os dias e os anos. Os dias tendiam para serem os mesmos. E a
concepção de dia dialogava com memória. A memória também era a
mesma. Sim, o rio sempre corre, as águas sempre são outras, a
recordação e a memória são sempre distintas porque o presente é
sempre distinto. Mas Tobias tinha uma doença literária, a doença
da página 138. Indubitavelmente, os textos eram os mesmos, assim o
dia e a memória eram os mesmo também. Mesmo travesseiro, mesmo
espelho, mesmo café da manhã. Mesmo almoço requentado de ontem. O
ontem era o mesmo. Tobias não sabia se o ontem era o mesmo porque o
hoje era o mesmo, ou o contrário. Acontece que a barba cresceu e as
rugas racharam a face entristecida de Tobias. As orelhas cresceram,
os olhos umedeceram, no entanto, o livro sobre a cabeceira e os
sonhos dentro do sono, permaneciam repetidos, centoetrintaeoutamente
iguais.
Todas
as noites, sempre noites de lua minguante, Tobias pegava seu livro
nas mãos e chorava, o marcador – materialização do pensamento –
guardava a página 138. Recomeçava a leitura, lia outros capítulos,
idealizava lugares e personagens, terminava o livro, dormia. No dia
seguinte o marcador voltava para a pagina 138, era assim todas as
noites e todas as manhãs, o pobre sofria de página não virada. Há
20 anos que Tobias lia a mesma página, capítulo mal resolvido de
sua juventude. Último dia de carnaval, último gole de cerveja,
incompreensões, impulsividade, copo quebrado, amor despedaçado. No
lugar de olhos, viu-se nuca. Costas dadas, caminhos opostos. O livro
deveria mudar de cor, mas permaneceu na penumbra do não vivido.
Acontece que o jovem não aprendera a escrever sozinho, sem perceber,
palavra por palavra, frase por frase, página por página, Tobias,
como quem escreve sem lápis, desescrevia-se na vida. Já não saía
mais, já não carnavalizava-se. Trancou-se no quarto, na memória
138. Virou um homem imaginário, de uma vida imaginária.
Cura
diagnosticada não existia, nem para o livro, nem para a cabeça de
Tobias. No início da doença o pobre homem chamou os amigos, para
verificarem o defeito da página. O livro fugia, sumia da cabeceira,
sumia da biblioteca, sumia das vistas de todos, menos da de Tobias.
Ninguém tocou o livro imaginário. Nos olhos dos outros não havia
livro nenhum, página nenhuma, recordação nenhuma. Os amigos
concluíram que o problema era da cabeça de Tobias. Assim, quem
sumiu foram os amigos. O doente ficou sozinho, ele e o livro.
Teve
um dia em que Tobias quis curar-se de uma vez por todas. Determinado,
abriu a janela de seu apartamento, encarou a luz solar, algo que não
fazia há muito tempo, e atirou o livro para o céu, com toda sua
força. O livro voou. Por um breve momento o homem sentiu-se livre,
nas nuvens. Mas logo se arrependeu. O problema é que a cabeça de
Tobias voou junto com o livro, depois de segundos lá estava ela, no
calor do asfalto, entre o trânsito dos carros, a rolar de uma lado
para o outro. Perdida. Solitária. Invisível. Desesperado, correu no
meio da multidão, juntou sua cabeça e retornou ao apartamento.
Sentou-se na cama e sentiu-se aliviado ao ver o livro na cabeceira,
aberto na página 138.
De
tanto procurar decidiu não achar mais. Sentou-se na cama do
conformismo e descansou a ambição e a expectativa. Aceitou seu
carma. Se Tobias tivesse amigos, nem perceberiam que o homem sofria
de página não virada. A página 138 era intocável. Soberana. Não
havia livros que a substituísse, quanto mais Tobias lia gêneros
distintos, mais ela lhe dizia. Era página 138 antes do café da
manhã, depois do almoço, durante o banho, em meio ao sono, de
repente de madrugada. Ao lado da cama, em cima da pia, sobre o
carpete da sala. Leu tanto que comeu todas as palavras da página.
Cada olhar. Cada aroma. Todo o cenário. Todo o dito e o não dito.
Todo o por-vir e toda a história. Todo som abafado. Toda ação
adiada. Toda respiração alterada. Tobias aprendeu a viver com a
página 138 dentro do coração, no seu devido lugar.
Numa
manhã, igual a todas as outras até então vividas, em meio a um
café extra forte, sentado na cadeira da velha e fria cozinha azul
bebê, o velho homem escutou um grunhido que lhe chamava da rua.
Tentou tapar os ouvidos, proteger-se no seu cadeado imaginário, mas
o som lhe puxava com as duas mãos e dissipou seu medo imaginário.
Levantou-se, e com os ouvidos colados na porta, escutou o que lhe
diziam: Tobias Tobias Tobias... Sim,
a rua chamava seu nome, um som sedutor e alegre. As mãos, sem que
Tobias visse, abriram a porta, e os pés, como num repentino salto,
pisaram o corredor do condomínio. O som era mais forte, eram mãos
grandes que empurravam Tobias. Quanto mais caminhava, mais audível o
som ficava.
Na
sala de estar do apartamento 139, a velha Lurdes, vizinha do homem da
página 138, e todos seus familiares, gritavam euforicamente por
Tobias, o nome do mais novo integrante da família, bisneto de
Lurdes, que acabara de chegar do hospital e entrar na vida.
Comemoravam o nascimento.
No
corredor, o velho Tobias também nascia.
Pode
virar a página.
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