E
a mãe, mexendo a massa do bolo de chocolate, olhava o menino com olhos ternos.
-
Corre menino! Vai correr e brincar lá fora.
E o
menino, sem olhar para a mãe, dizia:
-
Lá fora é muito pequeno mãe, aqui eu tenho acesso ao mundo. Navego aonde eu quero.
Estou brincando de carrinho com um japonês.
Coitada
da mãe, nunca tinha brincado com uma menina da cidade ao lado, quem dirá com um
japonês. Nem de boneca ou carrinho tinha brincado. Ela corria que corria
antigamente. Os morros eram mais espaçosos. O sol costumava trabalhar mais, não
dava lugar para tantas sombras. E as ruas, assim como os pés, eram todas
descalçadas, não havia essa concretude acinzentada artificialmente pintada de
colorido. A mãe navegava no vento.
E
a mãe, fazendo uma blusa de tricô, dizia:
-
Vai correr menino. Vai dançar e namorar um pouco.
-
Lá fora é muito antigo mãe, fede a mofo. Aqui é aberto, lá é fechado. Lá fora é
doentio e empoeirado. E estou namorando mãe, a Fátima mora na Bélgica, estou
conversando com ela.
A
mãe já batia os ovos do bolo de chocolate com dificuldade, mas continuava seus
afazeres domésticos. Permanecia varrendo o chão sem sujeira. Ninguém sujava o
chão. Ninguém saia de casa. Ninguém chegava da rua. Era um relacionamento a
distância dentro de casa, entre a mãe e o menino. O mundo que separava os dois
era a geração, o progresso, a evolução. A experiência de trinta anos. O menino
tinha o acesso ao mundo na ponta dos dedos. A mãe tinha as agulhas de tricô, a
colher de pau que mexia a panela. O mundo era pequeno para o menino. A mãe
fazia a tradicional broa de milho herdada pela sua bisavó. A mãe que corria que
corria, já não corria mais, se arrastava com o tempo. Morria com o tempo.
E
a mãe, penteando os cabelos brancos, dizia:
-
Vai correr menino! Vai trabalhar, viajar, nadar. Vai correr menino!
-
Calma mãe, para quê tanta pressa? Estou vendo a cotação do dólar. Analisando os
juros dos imóveis. Estou prestes a fechar um negócio importantíssimo numa
reunião nos Estados Unidos. Além do
mais, você já viu essa exposição no museu do Louvre? E essa comida tailandesa?
E esse perfume francês? Vou casar amanhã. O que você acha da guerra? E os
candidatos a presidência da república? E a novela? E o extermínio em série? Tenho
que estudar para meu doutorado. Tenho que comprar roupas. Tenho.
Coitada
da mãe, ela corria que corria, mas nunca pisou além de onde o vento a levava.
Nunca tinha ido à Europa, nem à capital. Nem tinha capital, só contava
centavos. E pela milésima primeira vez na vida fez sua tradicional broa de
milho, a última. A experiência são quilômetros de
distância a mãe pensava.
E
a mãe, tomando o remédio para o coração, dizia:
-
Vai correr! Vai correr!
-
Estou construindo minha casa.
E
a mãe, tomando o remédio para a memória, dizia:
-
Vai correr! Vai correr menino!
E
a mãe esqueceu-se de tomar o remédio para a memória. Esqueceu que o menino
cresceu e envelheceu, e continuo dizendo:
-
Vai correr menino! Vai correr!
O menino homem estava a navegar, brincando de dominar
o mundo. Conheceu lugares lindos, assistiu a muitos filmes, leu muitos livros.
Fez muitos amigos, todos muito bonitos, felizes e amáveis. Acessou as
informações que moviam o mundo. Era o menino global, conectado com os quatro
cantos do mundo. Acessou as verdades, as teorias, as fórmulas e os códigos.
A mãe já não falava mais a língua do estrangeiro
dentro de casa. Ninguém varria o chão, nem trocava o lençol da cama. Ninguém regava
as flores que ficava sobre a geladeira. A tradição da broa de milho se perdeu.
Ninguém corria mais. O vento cansou de bater na porta e foi soprar em outra
freguesia. A mãe morria, era isso que ela fazia, morria. Morria que morreu. Lá se
foi a tradição, lá se foi a memória. E a mãe falhou na educação do filho, não
lhe ensinou o que aprendeu em sua pobre infância de menina encardida, correr.
Era o que elas faziam antigamente.
Corriam. Não pela pressa, nem pela chegada, mas pela
corrida, pelo vento, pelo sol, pela chuva, pela praia, pela montanha, pela
terra, pela vida.
E
o menino que não sabia correr não pode correr para salvar a mãe das traças do
tempo que a devoravam.