domingo, 1 de janeiro de 2012

Objetos e Práticas.


O atrito nunca confortou os ombros nem as línguas daqueles aluminados e a discussão jamais redundou em compreensões entre os concidadãos da cidade do alumínio.
Por isso então, como eram descendentes de seres humanos sábios e evoluídos, conforme o progresso, resolveram reorganizar a distribuição social e geográfica da cidade. Uma verdadeira revolução. As ruas iriam ser divididas por objetos, isso mesmo. Teria a rua da faca, do cordão, do machado, da panela... Assim cada sujeito, conforme seu conhecimento, formação acadêmica, convicção, cor, crença e, é claro, razão, moraria na rua de seu objeto. Quem acreditava no objeto faca, moraria na rua faca e amolaria a sua faca.
No início as pessoas perderam o chão, perderam o referente, pois não podiam mais amolar os objetos dos outros e nem os outros. Mas a razão falou mais alto e a paz reinou. Nenhuma morte. Nenhum atrito. Nenhuma intriga. Nenhuma discussão. Nenhuma descoberta. Nenhuma redescoberta. Nenhuma ideia. Tudo em harmonia e perfeito controle e isolamento.
Assim seguiu-se o bom convívio na cidade do alumínio. Cada cientista na rua de seu objeto. A revolução logo surtiu efeito. A rua das facas tinham os melhores amoladores de facas. A rua dos machados tinham os melhores amoladores de machados. Só a rua dos cordões de alumínio que estavam um pouco enrolados em suas práticas, mas, apesar de todos os contratempos, ainda eram os melhores enroladores de cordões de alumínio.
Mas o povo evoluído não contava com a revolta dos objetos, que além de ganharem ruas, ganharam vida. De tão afiadas, brilhosas, e pontiagudas, fruto de longo período de estudo científico, as facas, não numa ordem linear e nem por união do povo, talvez “revolta dos objetos” não seja um bom termo, pois não se trata de unificação da massa, daqueles que por anos foram amolados, ou seja, unificação dos oprimidos, mas se trata de uma inevitável consequencia, ou de uma simples ironia, uma bela ironia.
Houve um quebra de paradigma, e o povo evoluído, como tão evoluídos que eram, pensaram que era uma coisa inédita no fluxo da história, uma exclusividade, e consequentemente seria o fim do mundo, ou então, racionalmente falando, seria um milagre.
O primeiro a ser atacado por seu objeto foi Romualdo. Um homem dedicado, compenetrado e esperançoso no que fazia, era o maior fiel das facas. Se não morasse na rua das facas defenderia até a morte a validade de sua faca bem amolada e a invalidade do machado bem amolado do vizinho, os dois objetos serviam para cortar, mas um era faca e o outro era machado, o que justificava tudo. Numa calorosa tarde de verão - Romualdo não tirava férias - o inesperado aconteceu. Após um intenso dia de trabalho, porém gratificante, Romualdo, com todo cuidado deixou seu objeto faca, muitíssimo bem afiado, ao lado do microscópio, virou de costas e foi até o banheiro urinar farpas de alumínio, doença genética dos moradores daquela cidade. E de repente, não mais que de repente, Romualdo foi esfaqueado pelas costas, sem a mínima chance de defesa. Foi uma sensação incrível, sentir seu objeto atravessar seu pulmão e perceber o quanto ele estava bem afiado. Foram oito excitantes facadas nas costas. Romualdo não saberia dizer quando era mais estimulante, quando a faca penetrava vorazmente seu corpo ou quando lentamente, depois de rebolar deliciosamente dentro de seu corpo, saia molhada, pingando e sujando o banheiro de sangue. Depois de tanto levar por trás Romualdo já não sentia mais nada, suas pernas estavam bambas e os olhos revirados pelo êxtase do momento. Com o coração batendo mais forte do que nunca e com os joelhos curvados no centro do banheiro, Romualdo sentia-se feliz. Sua língua espirrava sangue, depois da faca ter entrado e saído repetidas vezes de sua boca, quando o homem pôde perceber o quanto era grande a dura a sua pupila. Mas o ponto máximo da relação concretizou-se quando Romualdo, por estar totalmente anestesiado, estava deitado sobre o dorso no chão, com as pernas abertas. A faca, que ainda permanecia muitíssimo bem afiada, penetrou no órgão genital de Romualdo. Sangue e testículos sujaram o banheiro. Em questão de segundos, qualquer marcação de gênero, masculino, feminino, foi subtraída por um grande buraco. Uma lacuna. Romualdo, que pela primeira vez sentia toda a euforia do buraco, deu o último suspiro, gozou e morreu.
A desconstrução de Romualdo foi mais prazerosa do que a amolação da faca.
Os boatos é que somente na rua das facas nove pessoas, contando com Romualdo, já foram atacados por seus objetos de estudo. É a avenida mais feliz. No centro da rua foi construído um santuário para homenagear os nove cientistas que doaram suas vidas pela nobre causa e para salvar todos os pecadores. Toda tarde as crianças vão orar pelos seus nove anjos da guarda e pedir sucesso na amolação das facas para quem ainda está por vir.
Romualdo, que durante toda sua vida viveu só, hoje é idolatrado pelos seus conterrâneos. Afinal, Romualdo deu sua vida por uma faca bem afiada.


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