segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O catador de alegrias



Catador de alegrias.

João sempre foi um homem muito curioso, desde criança não gostava de repetir suas palavras, seus olhares, seus paladares. Foi por isso que desistiu da escola Guimarães Machado, no interior de Novo Hamburgo, na quarta série. Não conseguia ficar sentado ouvindo uma única pessoa falar. Não entendia porque era obrigado a ficar sentado, e ler e ouvir coisas sem sentido, desinteressantes. O pobre menino queria descobrir mundos fantásticos, era um desbravador. E foi por isso também que, em dias passados, João era Gari em Curitiba, cidade a qual mais gostou de trabalhar. Sim, João já trabalhou em várias cidades. Ele não gosta de assistir sempre o mesmo. Trabalhou como Gari em oito estados brasileiros, quarenta e duas cidade ao todo. E foi exatamente em Curitiba, há quatro meses, que João se interessou por uma curiosa rotina.
           Eram 5 horas da manhã de terça-feira. Os garis trabalham cedo, deve ser para limparem a cidade e assim as pessoas poderem sujar algo limpo, é mais prazeroso. E em meio a corridas, sacolas furadas, resíduos fedidos, sapatos velhos, ronco do motor, latas de coca-cola, João encontrou algo fantástico dentro de uma sexta de lixo na zona sul, no bairro mais luxuoso da cidade. O gari tinha esse dom, descobrir mundos maravilhosos na simplicidade. Dentro da cesta de lixo havia uma tela de pintura, uma obra de arte, tantas cores juntas, tanto sentimento. Era uma tela, medida paisagem 55x38, com a tinta óleo ainda fresca, era certo que tinha sido pintada na madrugada que estava prestes a ser substituída pelos tímidos raios de sol daquela inesquecível manhã. Que ótima idéia, em meio à escuridão da noite nada melhor que usar todas as tintas possíveis em uma única tela, e reproduzir luz, João pensou. Olhou para os dois lados, não viu ninguém, e meteu a tela em sua mochila. Iria ficar bonita na parede de seu quarto. No dia seguinte, dessa vez 5 horas e 45 minutos, devido ao atraso de Marcão, quando João estava recolhendo duas sacolas de supermercado com lixo dentro, o desbravador teve um dejavú, encontrou uma tela de pintura, uma obra de arte, tantas cores juntas, tanto sentimento. Somente com a obra na mão e inspirando a tinta ainda fresca, que João percebeu que estava na casa 207, a mesma casa onde encontrou uma tela no dia anterior. João não titubeou, meteu a pintura com distintos tons verdes na mochila. Ficaria bonita na parede da sala. Na quinta-feira foi uma tela com tons alaranjados, somente nesse dia que João notou o quanto era grande a casa 207. A tela ficou bonita na sua cozinha. A tela de sexta-feira ele botou ao lado da alaranjada. Final de semana, com sua folga, João tirou o dia para engordar um pouco, comer bastante e assistir alguns filmes. Na segunda-feira o que era interessante e curioso passou a ser preocupante, na cesta de lixo da casa 207 havia três telas, uma que o pintor ou pintora reproduziu na madrugada de sexta, outra na madrugada de sábado e outra na madrugada de domingo. Mas o que aquelas telas borradas, com tintas misturadas e sem forma representavam? Como representar uma sensação? Uma tela por dia, uma tentativa por dia. E assim seguiu durante todos os dias de trabalho, era uma tarefa matinal. Toda manhã João encontrava uma tela com tinta ainda fresca na sexta de lixo da casa 207 e botava em sua mochila.
Somente no mês de setembro, quando João possuía 76 telas, dois meses e 15 dias, que o gari resolveu conhecer o pintor das telas. Na folga de seu final de semana pegou um ônibus e foi até a zona sul, desceu no inicio da rua Continuidade e caminhou determinado até a casa 207. Queria conhecer o responsável pelo enfeite das paredes de sua casa, a parede da sala realmente estava linda. Em cada passo, uma expectativa, diferentes fantasias para o mesmo mundo. Em frente a grande casa havia uma mulher descabelada, com profundas olheiras, fumando um cigarro e chorando muito, João não sabia se socorria a mulher ou se saia correndo. No momento da dúvida notou que o portão da casa estava aberto e viu lá dentro um homem a pôr malas dentro do carro luxuoso. Ou a mulher estava chorando por que o marido iria viajar a negócios ou então aquela cena representava uma triste separação. Ao lado da mulher havia uma sexta de lixo e dentro uma tela toda rabiscada, uma maravilha, que só os olhos de João poderia perceber. Quase que, automaticamente, o Gari foi até o lixo para pegar a tela, mas baixou a cabeça e voltou para casa, com os pensamentos ainda mais confusos do que os da ida. Quem era o pintor? O homem ou a mulher? Por sorte, segunda-feira as três pinturas ainda estavam lá. Assim como terça, quarta, quinta, sexta. No final de semana João precisava jogar futebol, estava se cansando de Curitiba na verdade. Muita repetição. Foi até o Joca, seu vizinho, com uma bola na mão para jogar uma pelada com as crianças do bairro, mas seu vizinho estava de saída. Joca tinha um grande trabalho a fazer, uma mulher da zona sul da cidade solicitou seus serviços, Joca era pintor de casas. O pintor explicou que não tinha mais tempo para nada por um bom tempo. O serviço solicitado era grande, pintar uma casa gigante toda de cinza na rua Continuidade. Mulher rica com depressão, queria pintar a casa toda de preto, mas chegamos num acordo e escolhemos cinza, coitada, perdeu a filha há cinco meses e separou do marido recentemente. João ficou encabulado com o que tinha acabado de escutar, e ficou ainda mais encabulado com a resposta de sua pergunta. Era a bela casa de número 207. Será que a escuridão da noite penetrou por alguma janela da suíte da casa 207? Mas cinza? Toda cinza? E de onde sairá as telas coloridas e vivas? Se apagarão? Depressão? Pensou João.
Era a mulher a pintora das obras. Apesar dos olhos fundos, do cabelo despenteado, do tom de pele doentio, a mulher era bela. Sob a aparente tristeza havia uma beleza, talvez a mesma beleza jogada fora todas as manhãs. Após um momento de reflexão, o gari sorriu. João teve a melhor ideia de sua vida. Deixou o futebol de lado, botou alguns lixos no caminhão de Joca e foi até a casa 207 com o pintor. No caminho o vizinho explicou que a dona da casa era uma pintora conceituadíssima em todo Brasil, mas depois da morte de sua filha não conseguiu mais pintar e nem sorrir. João pôde entender. As telas eram buscas de superação, desabafos abafados, tentativas jogadas no lixo, dores materializadas. O serviço iria começar. A casa estava vazia, será que mulher foi se suicidar? Tomara que não. João arregaçou as mangas e iniciou a reconstrução. Nenhuma lata de tinta aberta, nenhum cinza, nenhuma cinza. Pintaram a casa com pinturas. Caco por caco. Tristeza por tristeza. Lágrima por lágrima. Tela por tela.
Ao saber que a mulher pintaria sua casa de cinza, João recolheu todas as telas de sua humilde casa e com a ajuda de Joca trouxeram as 103 obras para colorir a casa luxuosa. A parede da frente ficou repleta de cores, poderia colorir o coração de qualquer pessoa. Não era uma pintura, era um símbolo, poderia ser tudo e nada, tudo acoplado. Uma união de nadas. Verde, azul, preto, branco, amarelo, laranja, roxo... Tudo integrado, sem divisões. Todos os sentimentos. Após o trabalho João e Joca foram embora e Sá Ferreira ainda não tinha chegado. Após uma hora e meia Sá ferreira chegou. Levou um susto. Desconhecia aqueles traços, aquelas cores, que aquela obra de arte era reprodução dela. Sorriu e não parou mais, sorrindo abraçou as telas. Ignorava o artista daquela iluminada obra. Mas abraçou as cores, abraçou as dores. Quanta lágrima derramada nessas telas, tanta pincelada de tristeza. E quanta beleza meus olhos veem agora. Tudo está tão colorido, está tão claro e forte. Sá Ferreira parecia se sentir em casa, parecia familiarizada com aquelas telas. Seu coração exalava tinta fresca, pronta para colorir a vida.
          João foi para casa e dormiu em paz, e Sá Ferreira, pintora e escritora, enfim pode desfrutar de um sono prazeroso, mas o mais prazeroso era a vontade de não dormir.

Na verdade, nesses dois meses passados desde o fato relatado acima até o dia de hoje, Sá Ferreira não conseguiu reproduzir nenhuma requintada pintura como antigamente. Todas as editoras fecharam as portas para seu nome, seus poemas não passavam de despropósitos. Porém, daqui a nove meses, será concebida sua arte final, produzirá uma verdadeira obra de arte, Augusta. E sua casa era a mais colorida do bairro, ridicularizada pelos gostos alheios, chacoteada pelos olhos vizinhos, mas era como se o artista daquela curiosa obra existisse dentro de seu coração.

Várias fantasias para o mesmo mundo, só depende do ponto de vista.

João pediu demissão do trabalho e daqui a duas semanas vai trabalhar como Gari em outra cidade, ele não gosta de assistir sempre o mesmo. Quem sabe João trabalhe na cidade em que você mora. Quem sabe ele possa encontrar a felicidade que você põe no lixo todos os dias.

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