Eu queria não estar conjugado na
primeira pessoa
Mas na trigésima quinta
Na centésima sexta
Ou quarto sábado ou terceiro
domingo
Pois ser o primeiro, ser um e ser
só
é uma ilusão que amedronta
é uma verdade que se impõe.
E eu seria tantos que o pensamento
amanheceria distinto
Antes mesmo de criar fronteiras
de criar muros
Anoiteceria colorido
seria e não seria.
Antes de ser esqueceria eu quem
era.
Dizem que o amor só existe quando
não há muros
Pois bem, eu bem queria que
palavras não fossem tijolos
E o amor não fosse texto
Tentaria assim pintar passagens
Poetizar imagens
Inventar sonhos que são, que estão
e que vão
Mais pesados do que a realidade
Eu, que nunca fui pintor, poeta e
alquimista
Não erraria tanto na escolha da
verdade
e saberia que a escolha da verdade
é o erro.
Preferiria viver no tempo em que os
animais falavam
Tempo tão próximo e esquecido
Tempo em que se escutavam os
conselhos dos cachorros, dos ratos, e dos ursos
Era em 1990
Era minha infância.
Já não a escuto mais
das fábulas e contos
para os projetos e manuais.
Tanta teoria, tanto conhecimento
Oh céus!
Tanta biblioteca!
Tanto saber sem sabor
Estudos que nunca foram meu
jamais foram eu
mas construíram minha fortaleza
minhas muralhas
meu labirinto,
Eu que nunca fui Ícaro,
Entrincheirado e calado
Meu castelo sem jardim
Que se confundiu com minha
identidade
Que me separou das margens
Do espaço comum entre mim e o outro
Entre mim e os outros eus que
poderiam estar na minha pessoa
e me prendeu no centro.
Palavras e mais palavras
Se eu soubesse que elas eram um
erro
Botá-la-ias para fora de mim
Gritaria para não adoecer
Tiraria a baldes punhados e mais
punhados de palavras
Como alguém que limpa uma casa
alagada.
Se hoje me acabo
E morro
Conjugado na primeira pessoa
singular e só
é porque acertei nas escolhas que me deram
e por acertar e aceitar tais opções
encaixotadas e em série
errei em ser
como no amor
como no pensar
e a dor maior é saber que
a vida, como ela é vivida
dita, repetida
ensinada e vendida
na verdade,
nunca me serviu.