Era uma vez duas pessoinhas que moravam juntas numa grande casa. Apesar da casa ser grande, as pessoinhas não paravam de se pechar¹. Pechavam que se pechavam. Na cozinha. No corredor. Na sala de leitura. Até mesmo na hora de escovar os dentes eles se pechavam, e quando menos percebiam estavam enrolados, e lá iam as duas pessoinhas enroladas para a cama dormir, rindo que nem crianças devido as suas posições nada formais. Imagine se os vizinhos nos vissem assim pensava a pessoinha com peitos fartos, Eles sempre tão sérios, tão elegantes. Acho que eles não escovam os dentes, o que explica eu nunca os ter visto nessa inusitada posição e também nunca os ter visto sorrindo. Se não escovam os dentes como vão sorrir? Eles são tão elegantes. Acho que o que mais deixava a pessoinha de peitos fartos feliz era escovar os dentes. escovar os dentes e se enrolar com sua pessoinha. Mas seus vizinhos tinham lá suas manias estranhas também. Um dia a pessoinha de peitos fartos, a mais faladeira, quase perguntou para o Sr. vizinho qual era a sua religião, pois todas as noites, no mesmo horário, durante duas ou três horas, o casal elegante, cada um sentado no canto do sofá, sem trocar uma palavra sequer, ficavam obedientes olhando para um quadrado reluzente. Primeiro a pessoinha queria perguntar se aquele quadrado reluzente era Deus, mas ficou com vergonha. Depois queria perguntar qual era a religião do casal elegante, mas também ficou com vergonha, essas coisas são tão complexas. A pessoinha de pelos negros por todo o corpo não amava tanto escovar os dentes, sim, ele gostava, afinal ele gostava de tudo que deixava a pessoinha de peitos fartos feliz, mas o que mais a pessoinha de pelos por todo o corpo gostava era olhar o céu noturno. Passava horas olhando para as estrelas, para o vão noturno, com os dentes bem escovados e enrolado com sua pessoinha. Gostava de ficar olhando o que ele não conseguia ver. Teve uma noite que a pessoinha de pelo por todo o corpo sentiu-se flutuando entre as estrelas de seu negro céu, então ele era vão também, e de tão enrolado que estava com sua pessoinha os dois pareciam apenas uma única pessoa. E a pessoa era múltipla por natureza. Sem pijama, sem chão, sem tempo, sem nada e múltipla. E o prazer do dente bem escovado somado ao prazer do aroma das estrelas permearam os corpinhos desconhecidos, desconhecidos porque eram formas únicas e porque desconheciam qualquer coisa já sabida nessa terra.
Foi então que o Deus do vizinho falou alto e os ofereceu uma máquina de lavar roupa por apenas R$ 599. Era queima de estoque.
¹Esbarrar, segundo um casal de velhinhos de São Bento Baixo.