A mulher
estava no quarto quando o homem chegou. Não moveu nenhum dedo, nem
sequer se embelezou. Deitada, em meio sono, lembrou-se do tempo que
esperava o marido no portão, com a boca cheia de alguma coisa. Agora,
nem do quarto saía. Na verdade, nem mais conhecia o homem que
entrava pela porta da casa nova. Como era o seu olhar? Como sua barba
crescia? Como sua pele cheirava? Como ele vivia? Algumas lembranças
remotas não chegavam a responder. Perguntas que não mais cabiam
fazer.
O homem
chegou e foi direto a cozinha. Nada disse, nada ouviu. Somente os
sapatos arriscavam alguns dizeres pelo chão. Uns sussurros, abafados
pela sola do sapato e pela força do tempo.
O jantar
esfriava sobre o fogão. Ela, ainda deitada, ouvia o barulho dos
pratos, dos talheres, e do macarrão a crepitar na panela, como ele
sempre fazia. Ela odiava o péssimo desempenho culinário do marido.
Mas com o passar do tempo o ódio tornou-se indiferente e o barulho
do macarrão a crepitar inaudível.
Ele
chegou do trabalho com tanta fome que já não se lembrava de que
alguém dormia no quarto ao lado.
Ela
trabalhava durante à manhã e à tarde. Ele trabalhava no turno da
tarde e da noite. Nos dias ímpares ele preparava o jantar e deixava
sobre o fogão e nos dias pares era a vez dela de deixar o jantar
esfriando nas panelas. Os dois organizaram suas rotinas de uma forma
tão perfeita que não precisavam mais conversar para que a relação
perdurasse. O sistema estava tão bem montado que só bastavam
repetir as tarefas para a máquina não quebrar. O sistema estava tão
bem fechado que não conseguiam sair dele.
Quando
eles casaram, havia amor. Como dos demais casais que casam. Mas com o
passar do tempo o amor acabou, como dos demais casais que se mantém
casados. O problema é que na relação de Joana e Carlos nada ficou.
Às vezes fica uma dependência, um afeto, uma amizade, um respeito,
um carinho, uma cumplicidade, ou alguns filhos. Entre os dois o amor
acabou e nada restou. Assim, nada existia.
Nos
finais de semana Carlos gostava de descansar. Deitava-se em qualquer
lugar, no chão da cozinha, na grama do quintal, no sofá da sala.
Durante a semana ele não podia fazer as coisas que gostava por causa
do trabalho e nos sábados e domingos descansava para poder trabalhar
durante a semana. Com o passar do tempo já não sabia do que
gostava, então fechava os olhos e os sentidos e descansava, que era
uma das coisas que ainda sabia fazer. Nos finais de semana Joana
gostava de limpar a casa. Arrumava todas as coisas que não usava em
nenhum momento, e que só serviam para serem limpas. E assim varria o
chão da sala, lavava todas as louças de porcelana que a geração
de mulheres de sua família acumulou, lavava as roupas que não
usava, mas que estavam sujas e trocava os lençóis da cama. Das
coisas que gostava de fazer durante os dias de folga era de ouvir o
som da máquina de levar, que soava como música e de observar as
roupas bailarem lá dentro. O final de semana eram dois dias e
demorava a passar para Joana, por isso ela demorava ao esfregar os
vidros das janelas.
Em
diferentes momentos Joana chegou a varrer o marido para fora de casa.
Ela não o via deitado no meio da sala. Ele não sabia deixar sua
condição de sujeira. Teve um dia que Carlos acordou dentro da cesta
de lixo. A esposa, certamente, deve ter o confundido com uma casca de
banana. Teve um dia que Joana, ao esfregar com muita força as
janelas, quebrou um vidro e machucou a mão, mesmo assim ela não
parou de limpar o vidro que não existia e assim continuou a fazer
durante todos o finais de semana restantes.
Carlos,
quando jovem, esforçava-se para guardar uma quantia de dinheiro em
cada salário recebido. Ele fez uma poupança para gastar no futuro
com a esposa, mas o futuro nunca chegou e ele não gastou nada do que
muito economizou. Agora, velho e doente, Carlos já não sabia com o
que gastar, mesmo não sabendo mais o que era futuro e com quem foi
casado.
Numa
terça-feira, quando a casa estava bem velha, Carlos não foi
trabalhar, foi sua primeira falta depois de tantos anos. O homem
também não levantou para tomar café, nem para ir ao banheiro.
Carlos morreu enquanto dormia ao lado da esposa, sobre a cama do
casal. Carlos morreu, mas parecia descansar. Joana só achou uma
coisa estranha, não encontrou a comida esfriando sobre o fogão.
No
sábado, ela levantou-se cedo, bem disposta para a limpeza semanal.
Abriu toda a casa, um cheiro podre impregnava todos os cômodos.
Joana varreu o chão da sala, tirou o pó da estante, lavou a louça
da pia e, também, trocou o lençol da cama. Pegou o lençol sujo,
que fedia como se tivesse um amor morto dentro e colocou-o na máquina
de levar. Lavagem turbo e enxague extra. Ali onde estava, na área de
serviço, escutava a sinfonia da máquina de levar e assistia à
dança da roupa suja, dois pra lá, dois pra cá. O baile enchia
Joana de prazer.