Um peixe de papel.
Numa casa chamada
Mar moravam o pescador Vargas e sua companheira, a rendeira Dona
Candinha. Dois personagens muito simpáticos e conhecidos entre os
nativos da praia da vila. Seu Vargas era homem de poucas palavras e longos olhares.
Entre os mais novos e mais levados - as crianças de pés descalços
e pele suja de experiências menores - o pescador era conhecido como “O
estrangeiro”. Apesar de ter nascido com os pés na areia da praia e
com o perfume da maresia local, de ouvido em ouvido, passeava a estória de
que Vargas ainda não havia nascido, ainda não havia dado partida na
corrida chamada vida, o que justificava o olhar longo, quase livre,
infantil. Olhar curioso, de quem desconhece o mundo, pelo menos este
mundo que se diz de todo mundo. Por isso o pescador não era humano,
não era brasileiro, catarinense e nem imbitubense, era o
estrangeiro. Era um feto de 55 anos. Dona Candinha, por sua vez,
desaprendeu as palavras. A língua portuguesa pôs suas classes de
palavras, sua morfologia, sua sintaxe, numa velha mala abarrotada e
abandonou a identidade da mulher rendeira. Alguns diziam que era
culpa do estrangeirismo do marido, a língua não se fez entender e
partiu, outros, porém, diziam que a banguelisse da pobre, que não
tinha um dente sequer na boca, nem branco nem preto, a impedia de
articular os sentidos do mundo. Tudo estória de povo que não sabe o
que fazer no domingo, Dona Candinha aprendeu a língua do mar,
interagia por ondas, ora agitada, ora mansa, maré baixa e alta.
A mar, casa de seu
Vargas e Dona Candinha, não tinha porta, somente janelas. Candinha
reclamava, praguejava a teimosia do velho, pois não tinha mais força
nem resistência para ficar pulando janelas. Pular janela para
estender a roupa no varal, para colher o butiá do pé. Uma mulher de
53 anos, como pode isso! Mas o pescador desconversava, falava que era
para o bem do casal. Ele olhava em direção ao mar e visitava as
ilhas perdidas e as profundezas indecifráveis a olho de gente, e
assim reiniciava a velha estória. O meu tataravô que construiu essa
cidade, e não em sete dias, somente em dois. Está vendo essas
estrelas? Ele que ascendeu esse céu, e não em um estalo, mas num
piscar de olhos. Com uma velha enxada extraiu passados e ervas
daninha, cultivou toda essa terra, esse chão de onde brotaria toda
essa gente. O mar era sua casa, por isso essa casa tem esse nome, o
velho Vasconcelos era como um peixe, seu lar era o mar. Não usava
tarrafa para pescar, os peixes entregavam-se a ele, numa espécie de
agradecimento das águas salgadas. Era o homem mais forte do mundo,
alguns afirmavam que o velho era imortal, que tinha poderes
sobrenaturais. Mas um dia, e para tudo tem um belo dia, por forças
malignas, a mando do coisa ruim, um monstro rasteiro e gosmento,
vindo direto do inferno marinho entrou na casa Mar com um propósito
das trevas. O monstro passou por baixo da porta e comeu o velho
Vasconcelos, comeu o pescador imortal e levou para o fundo do mar. O
estrangeiro contava essa estória como se o monstro também tivesse
comido uma parte dele próprio. “Então mulher, se o monstro comeu
meu imortal tataravô, imagina a nós, dois miseráveis nutridos
somente de peixe”. Depois da morte do tataravô as portas foram
tiradas por segurança, se não há porta não há monstros que
entrem por baixo da porta. As janelas são nossas entradas e saídas!
Assim, jamais um monstro voltou a entrar por baixo da porta.
A mulher xingava em
silêncio, mas no fundo ria, sabia que a crença move montanhas. Uma
crença ingênua e verdadeira, essas sim constroem mundos fantásticos
e divinos.
Seu Vargas e Dona
Candinha, quem quiser conhecê-los que se desloque até Imbituba,
numa casinha de madeira, pequena e sem portas, lá entre a comunidade
do araçá e o hotel amarelo, numa rua de barro, cercada de restinga,
a cem metros da água molhada. Esse é o pedacinho de mundo do casal.
Sua nação, nunca pisaram em outro chão. Entre o mar e a mar é que
os dois vivem, entre a casa, o horizonte e tudo que há no horizonte.
E prestem atenção, pois o casal, de tão íntimos do lugar,
costumam se camuflar na natureza. Transformam-se em restinga, em
areia, em mar, em noite, em dia, em praia, em sóis, em vento...
A mulher trançava o
tempo e o destino em suas linhas de tricô. Era o mesmo ponto cruz,
passado, presente e futuro, na repetição dos movimentos diários. E
Seu Vargas gostava da vida desenhada assim, sentado na cadeira de
balanço a olhar sua companheira entrelaçando o tempo com duas
agulhas e a olhar o mar, logo fora da janela, a repetir seu incansável
ritual de doação de ondas. E tudo era lindo, perfeito, como tinha
de ser e assim era. Algumas vezes o pescador desfazia os pontos do
tricô da vida, misturava as linhas, bagunçava e enosava as lembranças, somente para ver
dona Candinha recontá-los. Os dois revisitavam o passado, matavam a
saudade, porque tudo o que se repete nunca é igual.
Certo tempo ela fez
uma casaco para o seu pescador, de tão bonito e de tão cheio de
carícias, seu Vargas jamais pôs em seu corpo, mas diariamente,
quando Dona Candinha estava ocupada nos afazeres da casa ou
consertando os peixes na cozinha, seu Vargas ia até o guarda roupa e
se aconchegava entre as linhas da esposa que era para sentir o abraço
dela. Porque abraço não é questão de braço.
E assim a vida
segue, conhecendo ou não o simpático casal imbitubense, sabendo ou
não o motivo das lágrimas de quem dorme só à noite. E a vida se
divide entre coisas sabidas e coisas não sabidas e as coisas são
sempre tão poucas. Só os peixes, na casa mar, que não eram poucos,
eram infinitos.
E toda manhã,
homens, mulheres, crianças descalçadas e até mesmo cachorros, iam
até a casa Mar e se enfileiravam na janela. É que a noção de casa
para o casal transgredia o sentido de abrigo e propriedade. A mar era
de todos, porque não era de ninguém, nada poderia ser de alguém.
Era Dona Candinha que organizava a partilha dos peixes. Todos diziam
que o mar, na madrugada, se estendia até a casa Mar, e nessa ponte
de águas, como uma mão que se estende, os peixes se entregavam aos
sonhos de Seu Vargas. Nesse ritual, respeitosamente, o pescador
agradecia a oferenda marinha e enchia o seu gongá. Quando a
madrugada se cansava de assustar as crianças medrosas e a luz aos
poucos se aprochegava ao litoral imbitubense era hora da partilha.
Porque cada um tem o seu pisar no mundo, e isso é tudo. O casal
desconhecia os saberes básicos da vida social e gramatical,
desconheciam os pronomes possessivos, não existia Meu, Teu, Seu.
Só sabiam o Nosso e
não havia fronteiras de sentido para o nosso. Os donos de
mercado reclamavam, em vão tentavam explicar o capital, o valor do
dinheiro, as relações de troca, de trabalho, de poder, mas de nada
adiantava. Dinheiro nunca entrou na casa Mar.
Assim, de manhã em
manhã, o sol e os imbitubenses, ainda remelentos, iam receber sua
parte de mar. A porção que o mundo tinha para lhe dar.
Numa manhã, Nino,
filho único do falecido Maneca, como de costume, foi até a Mar, a
fim de pegar uns pequenos carapicus para um fritado no almoço. Pirão
de feijão com carapicu, seu almoço preferido. Em Imbituba as
pessoas tinham esse curioso costume de serem felizes com o que
tinham. Mas as manhãs são coloridas com pigmentos distintos, assim
como os dias. Os dias são dias, mas alguns são mais dias do que
outros. Aquela era uma manhã de cor especial. Fritado não teve no
prato. O pequeno Nino, com as lombrigas tocando maracatu no estômago
para manifestarem sua fome, não ganhou peixo nenhum. Nem carapicu,
nem sardinha, nem peixe rei. Debruçou-se na janela e tirou os
pezinhos do chão, como sempre fazia. Quero peixe seu Vargas, a
mãe já está fazendo o feijão. Seu
Vargas, como quem não tivesse entendido o pedido do menino,
permaneceu parado, refletia com uma sacola na mão, olhava-a,
encarava-a. Após um minuto o menino recebera a sacola, deveria ser
os peixes. Seu Vargas nada disse, parecia estar confuso, contrariado,
sem saber o que fazer. Ele que era o escolhido pelo mar, ele que
falava a língua dos peixes, ele que repetia diariamente a partilha
dos peixes, parecia um pescador de primeira viagem. E assim o
estrangeiro permaneceu o resto do dia, mais calado do que o silêncio.
Ficou com uma interrogação nas rugas da testa.
Em
casa Nino levou três tapas na orelha. O que é isso
menino? Cadê os peixes? Nem pra isso tu serve, será possível? O
que é que essa sacola com esse livro dentro?
Fique aí olhando o feijão que eu mesma vou lá na casa
Mar.
O
menino agora tinha a mesma impressão facial do velho Vargas, um
mistério marinho inundou seu pequeno corpo.
Por
que o estrangeiro me deu uma sacola com esse livro dentro? E com
dificuldade Nino leu o título do livro que segurava em mãos:
Ro-bin-son-Cru-so-é.