Manuelita,
quando criança, tinha o curioso costume de errar os caminhos. Sair
dos trilhos. Não seguia o trenzinho na escolinha. A professora
gesticulava, fazia sinal com as mãos, e a menina não ligava,
continuava o seu trajeto, que até poderia chamar de seu. Manuelita
era míope, seu mundo era distorcido, abria portas em muros. Era uma
visão de mundo distinta, um tanto livre de possibilidades. Mas ainda
banguela a menina ganhou seu primeiro óculos. Após algumas
parafusadas e algumas colagens. Desmontagem e montagem. A nova cabeça
estava pronta, com suas invisíveis lentes.
Na escola
foi motivo para gostosas risadas de criança. Logo foi rotulada,
enquadrada dentro de um insignificante nome, que a anulou. Ela era
tantas outras coisas, poderia ser tantas outras, mas amolduraram-na
Quatro olhos, assim residiu sua identidade. Ao decorrer dos anos
recebeu novos nomes.
A menina
regularizou seu olhar. Olhar quadrado, enquadrava as paisagens, as
pessoas, os sentimentos. De forma tão quadrada que a menina
organizava o mundo em caixas de fósforo. Tudo cabia ali dentro, tudo
era passível de simplificação e banalização até atingir os
determinados limites da caixinha. As fronteiras dos aros de aço. A
vida não era boa, mas a menina acostumou-se. Ver o mundo mediado
pelos fundos de garrafa não era de todo mau, livrava-a da
responsabilidade de criação. E com preguiça ou medo de ver, a
menina enquadrava os outros. Era um modelo pronto de viver em
sociedade. Um modelo pré-fabricado, preestabelecido. Os óculos viam
por ela.
Manuela,
que perdeu o ita do nome por já ser adolescente, levava uma vida
tranquila até receber a atormentadora notícia de seu
oftalmologista. Era hora de despedir-se do óculos. Era o fim das
lentes e do aro vermelho sangue. Um medo apossou a menina, como se um
sentimento de solidão assolasse seu íntimo. Agora era só ela e o
mundo. Como lidar com a possibilidade do todo? Sem o enfoque da lente
e do aro escolhido com tanto carinho? A menina hesitou uma, duas,
três vezes, mas percebeu que não teria escolhas, afinal ela nunca
foi de ter muitas escolhas. Era cair no precipício ou pular no
precipício.
Ver com os
próprios olhos intimidava-a. Tirou os óculos. Fechou os olhos.
Inspirou, expirou. Abriu os olhos, primeiro o direito, depois o
esquerdo, porque ela aprendeu que a direita é melhor. O que viu não
a surpreendeu. O mesmo muro branco sem porta em sua frente. Ainda via
quadrados. Os olhos lacrimejaram, ela os massageou. Os quadrados
aumentaram, multiplicaram, tantos estereótipos, tantas fórmulas e
modelos, condutas e posturas para todos os lados. Tudo racionalmente
arquitetado. As certezas perseguiam-na, gritavam em seus ouvidos. Não
tinha para onde fugir. Era como se a professora a obrigasse seguir a
fila.
Quis
arrancar a própria roupa, entregar-se a nudez. Quis arrancar a
própria pele, aquela capa que escondia um não sei o que, que a
agonizava por dentro. Com medo, como quem levada pela gravidade,
correu. Corria que corria pela rua, sem cessar nem cansar.
Entre os
passos acelerados percebeu que todas as pessoas corriam. E todas
passavam e tudo era passageiro. Paisagens líquidas entre os dedos.
Óculos sólidos estavam no chão, o caos estava instaurado. Todos
corriam. E todos corríamos sem saber para onde, nem porque.