Histórias de pesca e livros.
2 - Tudo é peixe, tudo é poesia.
Dona
Candinha estendeu os peixes para secar. Assim era o ritual, cada
peixe tinha o seu lugar ao sol, tinha o seu direito de ser outro. E
antes de morrer os escamosos se transformavam em lagartos e
lagarteavam no insonso sol da manhã. Com o gongá cheio pela
generosidade marinha, aquela seria mais uma manhã de doações e
peixe frito no prato. Com esforço repetido a rendeira arrastava o
gongá até a grande pedra e, um por um, carinhosamente, cada um por
seu nome, os deitava na concretude cinzenta, com a calda em direção
o sol que era para não cegar os olhos. A pedra que nada fazia da
vida ganhou também sua função. Toda manhã ela tinha o dever de
segurar os peixes que, coitados, por força da natureza, não sabiam
sentar. Na casa Mar era assim, todos trabalhavam. Logo começou o
desfile, Carapicu, peixe rei, sardinha, tainha...escamoso, escamoso,
escamoso. Num desses movimentos de botar o dentro para fora, a mão
já enrugada, mas que tudo via, de Dona Candinha, não encontrou um
escamoso. Seria o corpo de mais uma árvore que se afogou no mar?
Não, não era. Rabo não tinha, nem olho e boca. Não dançava, como
os demais peixes, e suas escamas eram do tamanho do corpinho. Eram
escamas ou bocas? Pareciam bocas, um bichano com centenas de bocas,
porém sem dentes, mas que certamente sabiam falar, que pronunciavam
sentidos. Era um peixe gordo e fino, maior do que a sardinha e menor
do que a tainha. Retangular e feio.
O
sol e a Dona Candinha ficaram assim, observando aquele peixe
estranho. E quanto mais o sol se aproximava, mais a mulher
desconhecia o que via. Desconhecia as letras, o papel, as folhas, as páginas, os parágrafos.
- Vargas,
venha cá. Olhe isto! O que que é? É peixe?
Seu Vargas não
sabia ler e escrever, sua calejada e pescadora mão jamais segurou um
lápis e desenhou um coração ou traçou a letra A. Caderno nunca
viu. A escola do pescador era o mar e o professor era a tarrafa.
Desconhecia a sintaxe da língua portuguesa, mas sabia a língua dos
peixes do mar, sabia a língua do dia e a língua da noite. A noite
fala baixinho, igual o silêncio. E sabia que aquele retângulo não
falava a língua do mar e nem cheirava o gosto da maresia. Mas depois
de mais de mil visitas no sonho do pescador o mar jamais tinha
deixado e ofertado tal estranheza. Estranheza que deixou o casal
engalfinhado, se de letras eles não entendiam, de mar e de peixe
eles sabiam tudo e um tanto mais, menos aquele peixe retangular.
Para
seu Vargas o mundo se resumia em o que era peixe e o que comia peixe. Por exemplo: O filho da Noca e do Neco comia peixe, então o menino
não era peixe. A mesa central da casa Mar não comia peixe, então o
móvel era um peixe com quatro patas. Os pardais eram peixes de asas
e os cachorros eram peixes que não sabiam nadar. As formigas eram um
peixe esfarelado. A saudade era um peixe que por vezes se perdia da
correnteza marinha e voltava a bater em nossa porta. Assim como o
passado, que às vezes se perde da linearidade temporal e volta a
bater no nosso coração, sempre vestido de saudade. A lembrança, a
fome, o cansaço, tudo era peixe. Assim era a escola de seu Vargas.
- E o que faço? Boto
na pedra para secar com os outros peixes ou não?
Os peixes lagartos
que ali repousavam entreolharam-se e disseram que não conheciam tal
escamoso e que era para lagartea-lo em outro lugar.
Dona Candinha, que
entendia a língua dos peixes, levou o retângulo pra cozinha.
- Esse não vai ser
doado Vargas, esse será o nosso almoço.
- Não
mulher, esse peixe é de conhecimento do menino Nino, ele há de
saber como fazer esse fritado. Todo dia, final da tarde, vejo Nino
ir pra casa segurando uns dois peixes, tão estranhos quanto esse
aí. Deixa, hoje, quando ele vier buscar os carapicus, entrego esse
escamoso sem escama.
Seu
Vargas pegou o livro com carinho, como quem pega um recém-nascido
nas mãos. Olhava-o com estranheza, mas encantamento. Como um morcego
que assisti o nascer do sol, ninguém sabe, mas o morcego sempre se
emociona à luz solar. As mãos que tinham o dom de segurar a água
do mar, pela primeira vez na vida, apalpavam um livro. Mal sabia o
pescador que seria devorado pelas estórias, tempos, lugares e vidas
que o escamoso desconhecido tinha para lhe contar. O mar, traiçoeiro como é, nos sonhos mais ingênuos de seu Vargas, presenteou-o com um livro. Porque em Imbituba, tudo é passivo de mar.